Com a cachaça, Morretes mantém viva a história e leva o litoral para fora do país


Por Redação Publicado 18/02/2021 às 08h33 Atualizado 15/02/2024 às 19h44

Por Lucas Sarzi

Quando pensamos em Morretes, a primeira coisa que vem à cabeça é o barreado, depois a bala de banana. Mas você sabia que as cachaças produzidas na cidade, que fica ao pé da Serra do Mar, estão entre as melhores do Brasil? Morretes, inclusive, é uma das nossas referências quando o assunto é produção de aguardente. Vem embarcar nesta história, da “água que passarinho não bebe”, com o JB Litoral.

A cachaça tem registros de produção no litoral paranaense desde 1733. No século 19, com a imigração italiana, mais de 50 produtores caseiros passaram a tirar da cana-de-açúcar a sua essência, rito que perdura até os dias de hoje, em menor quantidade, mas mais refinada. Não à toa, alguns dicionários brasileiros indicam o verbete ‘morretiana’ como sinônimo do tradicional produto do Paraná.

No ano de 1796, Morretes tinha tamanha importância na produção de cachaça que ganhou o segundo engenho de açúcar do Brasil. A fama da cachaça produzida no município era tão grande, que há registros de que a produção paranaense era enviada para todo o país e até para fora: Argentina, Uruguai e Chile.

Com o passar do tempo, os impostos foram fazendo com que vários alambiques acabassem fechados e a exportação ficando cada vez menor. Apesar disso, a produção de cachaça ainda é o que sustenta as famílias de muitos produtores, que seguem à risca a tradição centenária e continuam mantendo o legado de Morretes como um dos principais polos de produção de aguardente no país.

Mantendo viva a tradição

Até hoje, Morretes lidera a produção de cachaça do litoral paranaense e contribui com cerca de 30% de todo o mercado estadual. Mesmo com pouco mais de 15 mil habitantes, a cidade tem, pelo menos, três produtores com registros oficiais do Ministério da Agricultura e produz cerca de 10 mil litros por mês.

Um dos nomes mais conhecidos no município, quando o assunto é cachaça, é Sadi Poletto. Aos 64 anos, ele é responsável por uma das fábricas de cachaça mais conhecidas da cidade e também é visto como um dos responsáveis pela retomada desta história, a da aguardente paranaense. Com sua cachaça, feita com as canas do litoral, Poletto já conquistou prêmios internacionais.

Sadi Poletto busca manter viva a tradição e já conquistou prêmios (Foto: Arnaldo Alves/AEN)

“Morretes é o berço da cachaça, foi um polo de valor inestimável. Tínhamos 62 produtores dentro da cidade e registros documentados do século 16. É uma pena que isso se perdeu com o passar dos anos, pois éramos uma das grandes referências nacionais”, comentou Sadi.

Catarinense, o empresário mudou-se para o Paraná ainda na infância e abraçou a tradição da cachaça de Morretes, quando soube da história por trás dos alambiques. “O governo Federal, na década de 80, deu um amparo maior a Minas e isso fez com que as coisas fossem cada vez piores para Morretes. Foi praticamente dizimada a produção. Isso não poderia nunca ter acontecido”, lamentou.

Há pouco mais de dez anos, o empresário comprou uma antiga fábrica de lápis e decidiu: iria resgatar a história da cachaça na cidade. “Tentei por dois anos resgatar essa história junto com os ex-produtores, mas encontramos muitas dificuldades. Então, eu mesmo resolvi encarar esse desafio. Fui fazendo, ampliando, abracei a tradição”.

Morretes já teve 62 produtores de cachaça, nos tempos áureos (Foto: Arnaldo Alves/AEN)

Em Morretes, desde sempre, são produzidos dois tipos de cachaça, a de alambique e a industrial. Com a Casa Poletto, o empresário tem sempre o objetivo de fazer com que as pessoas saiam apreciando ainda mais essa tradição brasileira. “Nosso objetivo é semear uma nova visão dessa iguaria brasileira. Vamos permanecer pobres enquanto não conseguirmos valorizar o que é nosso. A Europa nos ensinou que cada uva dá um vinho, mas que tal falar que cada cana-de-açúcar expressa uma cachaça diferente, com personalidade própria? É o que fazemos aqui na cidade”.

Cachaça de Morretes: refinada e premiada

Com a cachaça Ouro de Morretes, a Casa Poletto foi longe. Por três anos consecutivos, a bebida foi premiada em Bruxelas. “Isso só me faz acreditar que estamos no caminho certo, mas depende do brasileiro olhar e apreciar o que é nosso. Tem muito preconceito com a cachaça, ainda mais nas camadas mais jovens. As pessoas, pouco a pouco, começam a perceber que estamos comprando coisa importada ruim e pagando muito, enquanto aqui temos produções incríveis, que nem sempre são valorizadas”.

Em busca dessa valorização, além de falar cada vez mais com as pessoas, a empresa também buscou assessoria técnica para especializar-se e refinar o produto. Na Casa Poletto, as canas são filtradas e os fermentos utilizados exigem água dionizada (neutralizada), além do controle de temperatura e de graduação alcoólica, conforme as prerrogativas do Ministério da Agricultura e do Abastecimento.

A bebida passa por testes para garantir presença ínfimas de metais pesados, além de não sofrer adição de açúcar, conforme as versões mais populares. Todo o processo foi auditado pelo Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar).

Produção de cachaça em Morretes abre as portas para visitantes (Foto: Arnaldo Alves/AEN)

Algumas das suas cachaças são envasadas em barris de 225 litros de carvalho, araribá e amburana por até dez anos, e a exigência é alta. No ano passado, um lote inteiro de um modelo, que adormecia há dez anos, foi direcionado ao ralo porque o gosto final não se provou satisfatório para venda. “Temos que encarar a cachaça como um uísque ou um bom vinho, que são bebidas de porte. A cachaça deve ser alçada a essa categoria, principalmente porque temos esse histórico com ela. É uma luta que vale a pena travar”, explicou.

Junto disso, a cacharia abriu também o pedido do selo de indicação de procedência, que está em processo de finalização. “Estamos aguardando a liberação. É um selo importante, porque agrega valor, amplia a visibilidade e abre mercado para expandirmos os negócios. De modo geral, digo também que o litoral merece isso, pois as pessoas não são valorizadas como deveriam por aqui”.

Visita à fábrica

Como forma de manter essa cultura ainda mais viva, transportando as pessoas literalmente para o ambiente da produção da cachaça, a Casa Poletto funciona com visitação. Para o “tour” pela fábrica, basta a curiosidade: não é necessário reserva antecipada. A ideia foi pensada também como uma tentativa de explicar, de perto, a cultura, o plantio e o processo profissional da produção da “morretiana”.

Segundo o empresário, o objetivo de abrir as portas da produção é mais do que uma simples visita à fábrica. “Estamos trabalhando para trazer o Centro de Morretes para essa região rural. E a procura tem aumentado nos últimos anos, apesar de ser um trabalho mais difícil, com um modelo mais complicado”.

Mostrar a fábrica aos turistas faz com que, cada vez mais, as pessoas aprendam a valorizar o que é nosso. “Temos um destilado melhor que o whisky, mas depende muito da gente, nós temos que começar a gostar do que fazemos e precisamos entender o que temos dentro de casa. Valorizar o que é nosso. Nosso objetivo é semear uma nova visão dessa iguaria brasileira. Vamos permanecer pobres enquanto não conseguirmos valorizar o que é nosso”, concluiu Poletto.

Bora molhar o bico?

Além da cachaça Ouro de Morretes tradicional, a Casa Poletto vende licores de produtos locais, como o gengibre e a banana. Tem também a cachaça de cataia, que é uma planta típica do litoral paranaense. Aqueles que a sentem na língua chamam de uísque do caiçara.

Se ficou com vontade de experimentar a tão tradicional cachaça de Morretes, saiba que a cidade possui vários bons produtores, então um passeio pela região acaba sendo uma grande descoberta também. Para conhecer a Casa Poletto, é só chegar: Estrada do Anhaia, km 2,4, Morretes. Se preferir, o telefone para contato é o (41) 3462-3639.