JB Litoral investiga denúncia no HRL: mães dizem que violência obstétrica não foi um caso isolado


Por Flávia Barros Publicado 30/11/2021 às 10h50 Atualizado 16/02/2024 às 20h33
hospital regional

No começo do mês, em reportagem do JB Litoral, veio à tona um caso denunciado como violência obstétrica no Hospital Regional do Litoral (HRL), em que um bebê morreu, após a mãe passar por 12 horas de sofrimento, desde o internamento até o parto, em que foi utilizado o fórceps, instrumento para quando a mãe não tem dilatação suficiente à saída natural do bebê. O problema é que essa mãe já foi para ao HRL com indicação médica para uma cesariana, feita pelo obstetra que a atendeu em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), mas no lugar do procedimento, foi obrigada a ter um parto natural forçado, após várias horas, e o recém-nascido não sobreviveu. O caso foi denunciado, durante sessão plenária da Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP), pela deputada Mabel Canto (PSC). Com a repercussão da reportagem, a Câmara de Paranaguá, por meio da Procuradoria da Mulher, pediu explicações ao Hospital Regional do Litoral e outras mães procuraram o jornal para denunciar casos semelhantes ao que aconteceu no início deste mês, o que demonstra não ter sido um caso isolado de violência obstétrica no HRL.

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA x LEI

São nove meses de gestação e é grande a expectativa para o momento do nascimento do bebê. O parto é uma experiência muito importante para a mulher, momento marcante que será lembrado por toda a vida. Mas, de acordo com uma pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo e o Sesc, na última década, aproximadamente uma em quatro mulheres, no Brasil, sofreu com algum tipo de violência durante o parto.

A chamada violência obstétrica engloba maus tratos, abusos e desrespeito sofridos por essas mulheres, durante a gestação, o trabalho de parto e o nascimento dos filhos. Ainda não há uma legislação federal específica contra a violência obstétrica, mas há iniciativas estaduais e municipais, a exemplo do Paraná, o qual aprovou, em outubro de 2018, um projeto de lei sobre violência obstétrica e também os direitos da gestante e da parturiente. Essa lei define como violência obstétrica “qualquer ação ou omissão que possa causar à mulher morte, lesão, sofrimento físico, sexual e psicológico; a negligência na assistência em todo o período de gravidez e pós-parto; a realização de tratamentos excessivos ou inapropriados sem comprovação científica de sua eficácia; e a coação com a finalidade de inibir denúncias por descumprimento do que dispõe a lei”. Mas, como toda lei, é preciso que seja regulamentada, o que, passados três anos, ainda não ocorreu aqui no estado.

RELATOS

“Grávida de gêmeos, aos seis meses, me obrigaram a tê-los num parto normal, perdi meu Rafael, que teve o tórax quebrado no parto”

Bianca ainda guarda a pulseirinha e a caderneta de vacinação que seria do seu bebê Rafael / Crédito: Arquivo pessoal

Grávida de gêmeos, a esteticista Bianca Araújo, atualmente com 29 anos, foi para a unidade de saúde da Praia de Leste em três de novembro de 2017, quando estava com dois centímetros de dilatação. De lá, ela conta que foi encaminhada ao HRL, tomou medicamentos para interromper o trabalho de parto, quando ficou constatado que ela estava com 5 cm de dilatação. “Uma das enfermeiras me perguntou se eu era usuária de drogas por estar reclamando de muito do calor. Na hora da visita, a médica que me atendeu falou para mim e o meu marido que os nossos filhos não sobreviveriam porque eram prematuros, sem nenhuma sensibilidade, eu estava com seis meses de gravidez, foi feita uma ecografia e disseram que a menina já estava encaixada para nascer e o menino não, estava ‘atravessado’. As dores voltaram e não teve mais como segurá-los por mais tempo, a menina nasceu dia sete e o menino não saía, tentaram virar o bebê dentro de mim, forçaram muito a minha barriga, eu sentia o bebê preso nas minhas costelas, foi quando me levaram para a sala de cirurgia. A anestesia não pegava, eu senti o primeiro corte, então me deram anestesia geral, apaguei e tiraram o bebê”, contou Bianca ao JB Litoral.

A mãe, que já tinha duas meninas, perdeu seu único menino. “Quando eu ainda estava sob o efeito da anestesia, meu bebê Rafael passou por cirurgia por haver quebrado o tórax no parto, ele morreu horas depois. A Rafaela ficou três meses internada, em Campo Largo, até ter alta. Eu decidi contar a minha história, depois que soube o que essa mãe sofreu agora, isso não pode continuar. Chegaram a nos ligar para dizer que a morte do meu bebê seria investigada, mas nunca mais disseram nada”, relatou a mãe, que perdeu o menino, um dos gêmeos. Rafaela, a bebê que sobreviveu, é uma menina saudável, agora com quatro anos, caçula de três irmãs, e ainda faz acompanhamento em Campo Largo, na região metropolitana de Curitiba.

“Ignoraram a carta do meu médico e não fizeram a cesárea, me esqueceram em um quarto, e minha filha, que chegou viva na minha barriga, nasceu morta”

A dona de casa Simony Serafim, 32 anos, moradora da Ilha do Mel, tinha diabetes gestacional e estava com 34 semanas de gestação. Ela procurou atendimento médico na ilha, em julho do ano passado, porque estava com fortes dores de cabeça e o médico da unidade de saúde fez uma carta recomendando o parto cirúrgico imediato, uma vez que o bebê estava com os batimentos cardíacos acelerados, e ela foi ao HRL.

Com diabetes gestacional, Simony acompanhava com cuidado a gestação da filha / Crédito: Arquivo pessoal

Quando eu cheguei lá, o médico não quis fazer o parto, me mandou de volta para casa, isso era uma segunda-feira, quando foi na sexta-feira voltei ao meu médico porque já tinha consulta de rotina marcada e ele me falou para voltar ao HRL para ter minha filha. Na sexta mesmo me internaram, tomei a primeira injeção para amadurecer o pulmão da bebê e outra no dia seguinte, sábado. No domingo, um médico passou para me ver, pensei que já iria para a sala de parto, mas o médico disse que ainda não era a hora e, em vez de me levar para a cirurgia, mandou aumentar a dosagem de insulina, que passou a ser ministrada a cada duas horas”, disse Simony ao JB Litoral. Depois disso, a dona de casa conta que passou uma enfermeira e verificou os batimentos cardíacos de Sarah, terceira filha de Simony, e a “esqueceram” em um quarto, mesmo com os batimentos da criança estando acelerados. No dia seguinte, já na segunda-feira, passou um médico por lá e disse que a levaria para o parto, mas quando a bebê nasceu já estava morta. “Comecei a chorar e gritar quando a médica me deu a notícia, me senti muito desrespeitada, pois ela falava com frieza que não iria adiantar eu chorar, pois minha filha não voltaria, que não podia fazer nada, que ela nasceu morta e pronto”, relatou Simony, emocionada. A perda da filha completou um ano em julho, mas Simony disse ao JB Litoral que não consegue esquecer, que os sonhos dela e do marido de ver as filhas crescendo juntas acabaram. Simony sofre de depressão pós-parto e faz tratamento.

“Só decidiram fazer meu parto depois que minha irmã chegou ao hospital e fez um escândalo. Meu bebê era muito grande e teve o bracinho quebrado no parto normal forçado”

Um mês antes do caso da Simony, em junho do ano passado, a dona de casa Angélica do Carmo, 34 anos, deu entrada no HRL às 6h da manhã do dia 10 e o parto aconteceu depois do meio-dia. Ela estava acompanhada pela mãe, que pedia para fazerem uma cesárea, porque a filha já não aguentava mais. “Mas nem davam bola para minha situação e o que minha mãe falava, diziam que se eu tive meus dois primeiros filhos de parto normal, aguentaria ter o terceiro, só mandavam eu ir do chuveiro para a bola, estava sangrando muito, foi quando minha irmã chegou e começou a fazer um barraco e ameaçar se algo acontecesse comigo e o meu bebê, só depois disso me levaram para a sala de parto. O bebê nasceu com mais de 5kg, todo roxo, precisou ser reanimado e levaram às pressas pra UTI. Forçaram um parto normal, nem eu nem meu filho tínhamos mais forças, ele teve o bracinho quebrado durante o parto, mas sobreviveu e hoje é meu caçula, de três filhos, está saudável, com 1 ano e cinco meses. Só não processei o hospital porque o meu filho, graças a Deus, está vivo e meu esposo não quis ir adiante. As pessoas que fizeram meu parto eram muito jovens e minha irmã falou que elas ficavam dando risada, dançando e não se preocupavam com as mulheres que estavam ali em trabalho de parto”, detalhou Angélica ao JB Litoral.

Depois de um parto traumático, bebê e mãe passam bem / Crédito: Arquivo pessoal

“Quando a enfermeira foi trocar minha fralda levou um susto, fiquei toda roxa e com dificuldade para caminhar por quatro meses”

Moradora de Paranaguá, a comerciante Camila Oliveira, 20 anos, estava com o parto da sua terceira filha marcado para o dia oito de maio deste ano, mas no dia cinco estourou a bolsa dela. Era o seu terceiro, os dois primeiros nasceram de parto cirúrgico porque ela contou que não teve passagem, não tinha a dilatação necessária. “Desmaiei na sala de parto, porque tive hemorragia, nem vi minha filha nascer e sair da sala de cirurgia. Só a vi depois quando a levaram para o quarto. Quando a enfermeira foi trocar minha fralda pós-parto, ela levou um susto, pois eu estava toda roxa, barriga, pernas virilhas, tudo roxo, fiquei assim por quatro meses, até para andar eu tinha dificuldade. Acho que demoraram muito para fazer minha cesárea, cheguei de madrugada e a equipe que estava no plantão não quis, tive que esperar e sofrer por horas até a próxima equipe ver que realmente eu não tinha condições de ter um parto normal”, disse Camila.

“Fiquei quase uma semana com meu bebê morto dentro de mim, depois de ir ao hospital com ele vivo e me mandarem pra casa”

Depois de um parto traumático, bebê e mãe passam bem / Crédito: Arquivo pessoal

Após ser mãe bem nova, a auxiliar de cozinha Ivonete Rodrigues, 35 anos, que tem filhos de 18 e 16 anos, já sonhava com a chegada do caçula, João Gabriel, previsto para nascer no final de junho deste ano. Mas quando estava na 27ª semana de gestação, sentiu dores e, em 22 de março, foi ao Hospital Regional do Litoral, onde passou o dia inteiro, fez exames, mas o médico a mandou ir para casa, dizendo que estava tudo bem com o bebê. “No dia seguinte, uma terça-feira, eu procurei um médico particular, pois não senti mais meu bebê mexer. O médico pediu uma ecografia e quando fiz o exame, descobri que o bebê estava morto. Fui novamente ao Regional e tive que esperar até domingo, quase uma semana com meu bebê morto dentro de mim, pois eles não quiseram fazer uma cesárea para tirar o meu filho, tive que esperar uma vaga para a indução de um parto normal do bebê morto, ter que passar por tudo isso foi muito dolorido, porque eu acredito que, mesmo prematuro, ele tinha como sobreviver se tivessem feito um parto de emergência no dia em que os procurei e eles disseram que estava tudo bem com meu João Gabriel”, relatou Ivonete ao JB Litoral.

“Na sala de parto tem muitas mulheres que gritam devido à dor que estão sentindo, mas ainda têm de ouvir piadinhas de algumas funcionárias, não acho correto, pois é um momento tão especial, tão único”

O caso da Dayane do Carmo aconteceu há sete anos, era para o filho dela ter nascido dia 20 de abril de 2014, quando o obstetra que a acompanhava disse que ela já podia ir para o hospital, pois o bebê já estava pronto para nascer. Dayane conta que foi para o HRL e o médico plantonista a machucou durante o exame de toque. “Tanto que sangrou, e disse que meu filho não estava pronto para nascer, que eu voltasse em 10 dias, me senti desrespeitada, o médico foi muito estúpido e não demonstrou amor à profissão. Nove dias depois comecei a passar muito mal e fui novamente para o hospital, estava com febre e deram medicação para a febre baixar. Meu bebê nasceu todo roxo, ele, que na data certa estava na posição de nascer, tinha virado, sentou e estava em sofrimento, pois engoliu mecônio, que são as próprias fezes, fizeram cesárea de emergência, reanimaram o bebê e levaram para a UTI, passou um mês internado. Já faz sete anos, mas eu nunca esqueço e apoio essas mães, pois é preciso mudar, não pode continuar do jeito que está. Depois do que passei fiquei com medo de ter outros filhos por isso, tem muita criança para vir ao mundo e não pode continuar assim. Na sala de parto tem muitas mulheres que gritam devido à dor que estão sentindo, mas ainda têm de ouvir piadinhas de algumas funcionárias, não acho correto, pois é um momento tão especial, tão único, que as mulheres merecem mais respeito”, desabafou.

“Fiquei muito machucada, não conseguia andar, pois levei muitos pontos por baixo, tive depressão”

O caso da Bruna Cardoso, foi há dez anos, mas em muito se assemelha ao ocorrido no começo deste mês no HRL. Ela conta que chegou ao hospital de madrugada, com 40 semanas de gestação, já com dilatação, e o médico de plantão mandou colocá-la na sala de parto. Pela manhã, ela passou mal e verificaram que o bebê havia morrido. “Sofri muito, primeiro pela perda do meu bebê, que estava saudável dentro de mim, depois por terem me obrigado a fazer um parto normal, com as enfermeiras forçando minha barriga com os joelhos. Fiquei muito machucada, não conseguia andar, pois levei muitos pontos por baixo, tive depressão, mas hoje, graças a Deus, estou bem”, disse Bruna ao JB Litoral.

Ivonete ainda guarda as roupinhas que fazem parte do enxoval que preparou para ter o bebê / Crédito: Arquivo pessoal

INVESTIGAÇÃO

Procurado pelo JB Litoral, o presidente Fundação Estatal de Atenção em Saúde do Estado do Paraná (FUNEAS), Marcello Augusto Machado, disse que “além da imprensa, que é legítimo que os pacientes procurem, e estão à disposição outros canais. Todos os pedidos, reclamações e denúncias que são protocolados, é dado andamento em averiguação”. O presidente da fundação responsável pelo HRL afirmou, ainda, que a ouvidora do hospital entraria em contato para mais detalhes, o que não ocorreu até o fechamento desta edição.

A reportagem também entrou em contato com a Secretaria de Estado da Saúde (SESA), para mais informações a respeito das denúncias no HRL e sobre a regulamentação da lei estadual que dará mais dignidade e autonomia às gestantes e parturientes, mas, igualmente, não obteve respostas.