Mães denunciam que plano de saúde tem prejudicado o tratamento de crianças autistas em Paranaguá


Por Luiza Rampelotti Publicado 10/06/2022 Atualizado 17/02/2024

As principais características de quem convive com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) são dificuldades de interação ou comunicação social, comportamentos repetitivos e restritos e hipersensibilidade a estímulos sensoriais. Porém, cada autista apresenta os sintomas com aspectos e intensidades variadas.

Por isso, tanto o diagnóstico quanto o tratamento são personalizados de acordo com as particularidades de cada caso. O consenso é de que o tratamento multidisciplinar, realizado por profissionais especializados, é fundamental para o desenvolvimento e qualidade de vida do autista.

A equipe multidisciplinar é composta por neuropediatras, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, pedagogos, psicólogos, dentre outros, e acompanha o paciente por um longo período. No entanto, não são todos os autistas que conseguem ter o tratamento adequado.

Apesar de os pais quererem oferecer o melhor tratamento para os filhos que convivem com o autismo, muitas vezes, quando recorrem aos planos de saúde em busca do tratamento integral, se deparam com inúmeros entraves. Os problemas são variados: como indisponibilidade de profissionais especializados, agendamento de terapias, limitação de sessões, negativas de reembolso, recusas de tratamento e medicamentos.

Esses são os casos de duas mães entrevistadas pelo JB Litoral. Elas contam que, no caso das negativas, o principal argumento usado pela operadora Nossa Saúde é de que o tratamento multidisciplinar não está incluído no Rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Porém, a Justiça do Brasil já reconheceu a alegação como abusiva.

Interrompem o tratamento e até colocam obstáculos

Deise e seu filho Liralcio, de seis anos. O menino tem o diagnóstico de autismo e a mãe diz que o plano interrompeu o tratamento. Foto: JB Litoral

De acordo com Deise dos Santos Araújo, desde que o Sindicato dos Estivadores de Paranaguá e Pontal do Paraná (Sindestiva) realizou a mudança do plano de saúde, contratando o Nossa Saúde a partir do dia 1 de fevereiro de 2022, a atual operadora interrompeu o tratamento de saúde de seu filho Liralcio, de 6 anos, diagnosticado com autismo. 

Estou tendo dificuldade extrema para o tratamento de autismo com o Nossa Saúde. Por exemplo, eles intervêm nas recomendações indicadas por especialistas, nas questões médicas de terapias, interrompem o tratamento e até colocam obstáculos. Após várias tentativas com o plano, ainda não está sendo realizado os procedimentos específicos e ainda são omissos e negligentes”, conta a mãe.

Ela revela que em maio seu filho precisou de atendimento médico de emergência porque estava com febre e, ao chegar na clínica, onde o plano deveria prestar o atendimento médico, não havia pediatra disponível. “A atendente me orientou a levá-lo para o ambulatório existente dentro do sindicato. Lá também não havia pediatra e o clínico geral de plantão se negou a atender meu filho”, diz.

Mãe fez BO contra o Nossa Saúde

Por conta disso, Deise prestou queixa contra o plano no dia 16 de maio. No Boletim de Ocorrência, consta que ela levou o menino que estava com estado febril à clínica no Sindestiva em 13 de maio e teve o atendimento médico negado. Além disso, a mãe relata no documento que as consultas que o seu filho precisa fazer também estão sendo negadas.

É um descaso absurdo. O plano anterior da MedSul sempre deu amparo no tratamento. Agora a Nossa Saúde está intervindo, já me constrangeram na frente de outros pacientes dizendo que eu precisava ir para Curitiba passar com um neuro deles para ver se meu filho realmente precisava de tratamento, sendo que ele já tem o laudo. Eles não querem oferecer terapeuta com integração sensorial, sendo que antes era oferecido. Tudo isso atrapalha o desenvolvimento do meu filho e afeta negativamente na qualidade de vida dele e na minha também”, lamenta.

Outra mãe diz que o plano não liberou terapias

Quem passa por situações semelhantes com o mesmo plano de saúde é Fabiane Treska, mãe da pequena Laura, de apenas dois anos, que possui autismo e uma doença rara. Ela conta que a luta começou quando a menina foi encaminhada pelo pediatra a um neuropediatra, pois estava com atrasos no desenvolvimento.

Isso aconteceu quando ela tinha 11 meses e já tive muita dificuldade para agendar um neuro em Curitiba, pois aqui não tem pelo plano. Depois que conseguimos a consulta, o plano pediu para fazer uma perícia com a médica deles, pois a neuro pediu vários exames e eles estavam questionando se já sabia que a Laura tinha uma deficiência desde o nascimento. Mas eu não sabia, fui descobrir com um ano”, conta.

A mãe Fabiane conta que Laura, de dois anos, tem autismo e uma doença rara e o plano de saúde tem dificultado a liberação de guias, exames e consultas. Foto: JB Litoral

Ela comenta que o resultado da perícia levou em torno de 20 dias e, durante esse período, a menina precisava realizar mais exames e terapias e, inclusive, a neuropediatra responsável fez um relatório solicitando que o Nossa Saúde não impedisse, mas não obteve sucesso. “Como o plano não liberou as terapias, a única solução foi encaminhar minha filha para a APAE, porque ela não estava conseguindo o atendimento pelo plano. Laura estava estacionada, não se desenvolvia, porque para alguma evolução são necessárias as terapias”, diz.

Fabiane conta que quando a filha foi para a APAE, ainda não possuía um diagnóstico fechado. Tudo o que os pais sabiam era que ela possuía um erro inato do metabolismo. Entretanto, o quadro foi se agravando e a menina passou a apresentar convulsões e atraso.

O neuro da APAE pediu um exame chamado Exoma Completo, um exame genético de alto custo que o plano de saúde se negou a fazer. Então lá fui eu fazer uma campanha no Facebook para arrecadar os R$ 5 mil e realizar o exame que mostrou onde era o erro da genética dela, que é na mitocôndria. Ela possui miopatia mitocondrial”, explica.

A miopatia mitocondrial é uma deficiência que compromete a cadeira respiratória do DNA, ou seja, as células não produzem energia suficiente para se desenvolverem. Fabiane conta que as terapias, acompanhamento com fonoaudiólogos, psicólogos e a fisioterapia convencional de Bobath são fundamentais para a qualidade de vida da Laura.

“Estou perdendo minha filha e o plano não ajuda”

Desde então, a mãe relata que tem tido dificuldades com a demora para liberação de guias. “Eles não liberam as terapias, só a terapia ocupacional, que foi com muito custo, mas a fisioterapia eles também não disponibilizam. Porém, até recentemente eu estava um pouco mais tranquila, pois estava tudo bem com a minha pequena, os exames estavam equilibrados e a doença não estava se manifestando. Mas, em março, fiz uma nova ressonância que eles demoraram mais de seis meses para liberar e tive a pior notícia da minha vida: a doença afetou o cérebro primeiro, pois é o órgão que demanda mais energia e as células não estão aguentando, então já houve a morte de algumas e não tem como reverter, além de os demais órgãos poderem ser afetados. Minha filha está tendo morte cerebral aos poucos e não temos remédios, não há tratamento específico, não há cura”, lamenta.

Fabiane afirma que, apesar da gravidade da situação e com todas as guias solicitadas pelos especialistas, o Nossa Saúde só liberou fonoaudiólogo e psicólogo uma vez por semana, e a fisioterapia de Bobath não foi autorizada com a desculpa de que não está no Rol da ANS. “Mas está sim, porque a Unimed cobre”, diz.

Eles não liberam as guias, exames, consultas e terapias, além da falta de empatia deles mesmo sabendo que estou perdendo a minha filha. Tenho que sofrer com o diagnóstico dela e sofrer com eles. A Laura depende do plano para ter uma qualidade de vida melhor, mas eles não ajudam. Estou perdendo minha filha e não tenho dinheiro para pagar R$ 5 mil em terapias particulares todos os meses, sendo que ela tem o plano e eles devem credenciar clínicas para o atendimento. Me dói, é revoltante, somos feitos de idiotas”, desabafa.

Legislação e entendimento do Judiciário

A Lei 9.656/98 determina a cobertura obrigatória pelos planos de saúde para doenças listadas na CID-11, a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. Inclusive, a versão atualizada em 2018 une todos os diagnósticos do transtorno do espectro autista em um só código, o 6A02.

Em dezembro de 2012, a Lei 12.764 instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, que prevê a obrigatoriedade do fornecimento de atendimento multiprofissional ao paciente diagnosticado com autismo. Além disso, o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor considera abusiva a cláusula contratual que pretende limitar o tratamento prescrito pelo médico.

Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo já tem entendimento pacificado de que não prevalece a negativa com base na ausência no Rol da ANS. A Súmula 96 afirma que “havendo expressa indicação médica de exames associados a enfermidade coberta pelo contrato, não prevalece a negativa de cobertura do procedimento”.

Já a Súmula 102 destaca que “havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS”. Desse modo, o Poder Judiciário tem se posicionado a favor dos autistas que buscam a justiça, determinando a cobertura integral do tratamento pelo plano de saúde.

O que diz a Nossa Saúde

O JB Litoral procurou a Nossa Saúde para que se manifestasse a respeito das acusações de interrupção e prejuízos aos tratamentos necessários pelos pacientes autistas. Em nota, o plano afirmou que “possui uma rede própria e credenciada com hospitais, serviços de apoio e diagnose e profissionais referenciados em vários segmentos para a prestação de assistência especializada, seja ela primária, secundária ou terciária sempre que necessário”.

Além disso, destacou que os atendimentos para beneficiários diagnosticados com autismo são prestados seguindo sempre a referência técnica e terapêutica indicada pelo médico assistente e que esteja definida conforme instrui o Rol de Procedimentos e as DUTs da ANS.

Podemos afirmar que até o momento do envio deste e-mail, não temos registros em que haja relato que não tenhamos prestado qualquer tipo de assistência médica ou hospitalar, conforme prevê o Rol de Procedimentos da ANS e a cobertura contratual do plano de saúde junto com a Sindestiva”, diz.

A nota ressalta, ainda, que conforme instruções de protocolos técnicos, o TEA não requer tratamento em regime de urgência ou emergência. “Esclarecemos que de acordo com a Lei dos Planos de Saúde (nº 9.656/98), são considerados casos de emergência quando há risco imediato de morte ou de lesões irreparáveis para o paciente e; casos de urgência, são aqueles resultantes de acidentes pessoais ou de complicações na gravidez”, afirma.