Do espia ao lanço: pesca da tainha movimenta a comunidade no inverno


Por Brisa Teixeira Publicado 15/07/2021 às 18h05 Atualizado 16/02/2024 às 07h40

O sol ainda nem nasceu e Antônio Carlos dos Santos, o Carlinhos, e Ademir das Neves Pereira, o Vô Pereira, já estão no alto do Morro do Sabão, sem tirar os olhos do mar. Eles montam um acampamento improvisado e mantêm a guarda, geralmente das 6h às 17h, aguardando pacientemente qualquer sinal de cardume. Eles são peças-chaves na pesca da tainha e recebem o nome de espias. São eles que avisam lá de cima para o colega de pesca Perereca e dono do barco “Agora Vai” o momento exato do lanço (lançamento da rede), na Praia do Miguel, em Encantadas, Ilha do Mel.

“Antigamente fazíamos sinal com o chapéu e eles, lá embaixo, entendiam que se aproximava um cardume de tainha. Hoje usamos radinho”, explica Carlinhos, do alto dos seus 70 anos e espia há mais de 50 anos. “Quando são poucos peixes, em torno de cem, tem que conhecer muito de pesca para identificar que vem tainha aqui de cima”.

Ele participa da pesca da tainha desde os sete anos, quando acompanhava os seus pais. Aprendeu muito com pescadores experientes, como o senhor Valdemar Valentim, um dos grandes responsáveis por essa pesca ser tão forte na comunidade de Encantadas.

Do alto do Morro do Sabão, os espias Carlinhos e Vô Pereira não tiram os olhos do mar. Fotos/Brisa Teixeira

“Hoje, com o nosso conhecimento e experiência, colaboramos com as famílias que dependem dessa pesca e esperam o ano inteiro pelos meses de maio a julho, período quando as tainhas migram para cá, fugindo das águas frias mais ao sul”, explica.

O lanço

O famoso e esperado lanço é um tipo de pesca praticada pelo sistema de rede de arrastão. É um verdadeiro ritual que transforma a simples prática de puxar a rede à praia em um autêntico espetáculo.

No momento do lanço, homens, mulheres e crianças ajudam a puxar a rede. O turista que passa por ali também pode ajudar. Quanto mais gente puxando, melhor. Quem ajuda na rede de arrastão e a tirar os pescados da rede leva tainha para a casa.

No momento do lanço, quem ajuda a puxar a rede leva tainha para casa. Fotos/Brisa Teixeira

O pescador Ademir Crisanto de Miranda, o Gabardo, explica que a rede precisa ser bem reforçada, alta e comprida, para que as tainhas não escapem. “Se uma encontrar uma saída, todas saem”, esclarece o pescador, que monta todo o ano acampamento na Praia do Miguel e já atuou muitos anos como espia.

Pescador Gabardo fixou, na Praia do Miguel, um dos 15 acampamentos. Fotos/Brisa Teixeira

Ele conta que este ano, o maior lanço foi no domingo, 4 de julho, quando pescaram mais de 1.500 tainhas. “Do momento que o espia enxerga o cardume e avisa a hora exata do lanço, a gritaria começa no acampamento”, conta. São cerca de 15 acampamentos espalhados pela Praia. Muitos pernoitam e passam o dia ali, envolvendo 30 famílias de Encantadas.

Em questão de poucas horas, pode ocorrer o próximo lanço, então ninguém vai embora. Os guias continuam de olho no mar, o pessoal do barco se organiza e as famílias voltam para os acampamentos. A comida está garantida com uma variedade de modos de preparo de tainha: assada, recheada, cozida, defumada, desfiada, fresca na brasa, entre tantas outras. Tudo regado de muito bate-papo e umas “biritinhas”, que não podem faltar. 

Pescador Gabardo fixou, na Praia do Miguel, um dos 15 acampamentos. Fotos/Brisa Teixeira

Divisão dos peixes

Há um consenso na divisão em tudo o que é pescado e todos ficam satisfeitos. Nesta época do ano, as tainhas servem de subsistência para o consumo próprio da família, assim como a venda para os restaurantes, pousadas e para o continente.

“É uma pesca comunitária e faz parte da história da Ilha. Ela vem lá de trás dos nossos antepassados. Estamos dando continuidade e trazendo nossos filhos e netos para que essa tradição se perpetue”, diz Silvio Agostinho Serafim, 70 anos, lembrando que desde “molequinho” vinha pescar com os seus pais. Hoje cercado de filhos e netos, todos em família participam da pesca.