Projeto Quebrando o Silêncio incentiva mulheres a denunciar agressores há quase 20 anos no litoral


Por Redação JB Litoral Publicado 10/08/2020 Atualizado 15/02/2024

Por Gabriela Vizine

Era um fim de semana e o marido de *Patrícia acabara de chegar bêbado em casa. Gritos e ofensas, esbravejados pelo homem, ecoavam na vizinhança. Em meio ao calor das discussões, o marido a pressiona contra a parede e começa a enforcá-la. Se não fosse o socorro da filha, talvez Patrícia pudesse ser mais um número no índice de óbitos por feminicídio. Relatos como esse, são mais comuns do que se imagina. Só no litoral do Paraná, segundo dados da Polícia Militar do Paraná (PMPR), cerca de 200 casos contra violência à mulher foram atendidos nos últimos 3 meses na região. Com o intuito de incentivá-las a denunciar abusos e violências, a Igreja Adventista do Sétimo Dia criou o Projeto Quebrando o Silêncio. Há quase 20 anos, a campanha trabalha na educação e prevenção contra violência e, neste ano, mesmo com os limites estabelecidos em combate à pandemia, irá produzir ações para incentivar a igreja e a comunidade local.

Criado em 2002, o projeto está presente em oito países da América Latina: Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai.  Materiais como revistas para mulheres, adolescentes e crianças, audiolivros, seminários, palestras, curta-metragem, outdoor, cardoor, passeatas e campanhas são realizadas todos os anos. De norte a sul do Brasil, a campanha engaja o público feminino. De acordo com informações do departamento, 600 escolas foram atingidas no sul do país, além da comunidade e igrejas.

“O objetivo é conscientizá-las a respeito da violência física e psicológica. Para aquelas que sofreram, ajudar a procurar profissionais para tratar traumas que possivelmente acarretaram devido às situações vivenciadas. Já as que estão sofrendo, auxiliar a denunciar e chamar a polícia se for preciso”, declara a diretora do projeto no litoral Janaína Rodrigues.

Denise Lopes é responsável pelo Quebrando o Silêncio na região sul brasileira (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). Ela comenta que, este ano, o projeto foi divido em três etapas. E que a primeira, até mesmo por causa da pandemia, será virtualmente.

“Todo ano temos uma temática diferente e neste a temática está voltada mais para a violência contra a mulher. Cada vez que organizamos um projeto, ele tem mais de um ano de antecedência. E isso vem à tona num momento crescente desse número”, declara.

Todos os anos, passeatas são realizadas. Devido ao risco de contágio, apenas as revistas serão distribuídas com todos os cuidados exigidos e sem aglomerações, segundo os líderes do litoral.

DENÚNCIAS

Aos 17 anos, *Manuela casou-se com *André. Eles permaneceram casados durante 13 anos até o momento em que ela quebrou o silêncio. Sob seu teto, diariamente recebia muita violência verbal até as agressões se tornarem físicas. Antes de conhecê-lo, a jovem sonhadora estudava e fazia cursos para alavancar sua carreira. Porém, após o matrimônio, ela abdicou dos sonhos, estudos e estágios para permanecer em casa, até porque seu marido não queria que ela trabalhasse. Muito nova, estava apaixonada e não percebia os sinais abusivos surgindo no início. No começo, a relação era estável e tranquila até que os primeiros insultos foram proferidos.

“Foram anos de agressão verbal até se tornarem físicas. Isso foi me destruindo. Assim como a minha autoestima. O triste é que foi sem merecer. Você está ali se doando para a pessoa, fazendo todo o possível para salvar o casamento. Estava destruída por dentro, por tantas agressões verbais, e quando houve a primeira física foi a gota d’água”, conta.

Ela diz que antes de apanhar pela primeira vez, a ponto de sofrer lesão, entre ofensas, recebeu empurrões e puxões de cabelo algumas vezes. A Lei Maria da Penha, lei 11.340 sancionada em 2006, pontua que empurrões e puxões de cabelo são considerados, mesmo que leves, agressões físicas. Não é necessário lesão para caracterizar violência e denunciar.

Antes de engravidar, Manuela aguentava as ofensas e diz que deixou chegar nessa situação porque perdoava. “Ele era muito machista. A gente acha que a pessoa vai mudar porque no outro dia eles ficam maravilhosos. Entretanto, infelizmente isso não aconteceu”, relata. Após o nascimento do seu filho, ela observa que a situação ficou ainda mais preocupante, pois o menino também sofria com o cenário que via em casa, inclusive, psicologicamente.

ZELO NO MOMENTO DE DOR, NÃO ADIANTOU

Nesse meio tempo, André teve um acidente, ficou em estado vegetativo, segundo a ex-mulher, por dois anos. Foi Manuela quem cuidou dele, ajudou-o a reaprender a andar e trocou fraldas. Antes do acidente, o ex-marido bebia muito e ficava descontrolado. Depois do ocorrido, parou com a bebida alcóolica. E para a surpresa de Manuela, mesmo cuidando de André naquela situação em que o quadro exigia muita dedicação, depois de recuperado (o que ela diz ter sido um milagre) e sem bebidas, ele retornou com o comportamento agressivo e ficou ainda pior.  “Os mesmos dedos que ajudei a abrir para retornar os movimentos, foram os mesmos que me retribuíram com tapas”, relata.

Depois da agressão, ela recebeu uma ligação que aliou na escolha de dar um basta. “Meu filho tinha 4 anos e me chamaram na escola, pois ele estava chorando. Chegando lá, a professora disse que ele pediu para ir para casa para cuidar da mãe porque não queria que o pai batesse nela.  Até me emociono ao falar, pois foi algo que marcou minha vida e foi definitivo para dar o ponto final”, conta com a voz embargada e lágrimas nos olhos. 

Hoje, aos 40 anos, ela comenta que se reergueu. Recomeçou a vida e reconquistou o amor próprio. “Hoje eu superei essa fase, mas uns dois anos atrás eu fiquei depressiva e não conseguia me aproximar de nenhuma pessoa do sexo masculino, nem que fosse para me dar bom dia. Eu ficava retraída. Hoje em dia superei tudo isso”, expressa. Os sonhos profissionais de menina, agora fazem parte do desenvolvimento e objetivo da vida de Manuela e ela enxerga a si mesma como uma mulher valorosa.

DISCURSO RELIGIOSO

Segundo dados da pesquisa da Universidade Presbiteriana Mackenzie, 40% das mulheres evangélicas são vítimas de abusos físicos e verbais. Sob o discurso de “seja sábia, ore e fique calada”, em algumas mulheres com uma visão errada de interpretação do texto-bíblico-cristão, permanecem em silêncio.

Já o Quebrando o Silêncio, organizado por um grupo evangélico, faz o caminho contrário: instiga mulheres e traz o debate para dentro de seus templos (além da comunidade). “Na Bíblia diz que ninguém deve ser agredido, Jesus ensinou a amar e a respeitar todas as pessoas. O lar é local de cuidado e respeito e não o contrário. Não pregamos a questão do silêncio.” Ensina Janaína.  Ela acrescenta que mulheres religiosas e não-religiosas são alcançadas. Assim como Janaína, Denise Lopes também enxerga que esse “amor”, estabelecido por agressões, não é Celestial.

“Eu tive muito apoio da igreja, quando procurei o ancião (líder) e contei sobre o que aconteceu, na mesma hora ele me ajudou a denunciar. Eles me disseram que eu não poderia continuar naquela situação e ficar quieta sobre o que aconteceu”, revela Manuela. “Se você deixa as agressões continuarem, isso vai tomando uma proporção maior. Quanto mais você fica quieta, mais eles vão fazer. Deus não quer isso pra gente e isso não é amor. É uma doença. Eu passei por isso. A pessoa te deixa o mais raso possível. Não é amor verdadeiro. Não é o que Deus quer”, explica a vítima.

INSEGURANÇA

A violência gera medo e insegurança. Muitas vítimas são ameaçadas e coagidas pelos parceiros. “Conheço amigas que estão na mesma situação e não denunciam por medo, pois são ameaçadas todos os dias. Ele (o agressor) não tem medo porque ela está com medo, por isso é importante denunciar. A partir do momento que você aceita mais de uma vez, você perde o controle”, explica Manuela.

“Muitos agressores usam métodos persuasivos. Para a vítima quebrar esse ciclo é uma luta. É necessário a ajuda de profissionais e também da sociedade. Há pontos que precisam ser fortalecidos. Poucas se sentem asseguradas”, comenta a psicóloga Sabrina Pereira. Ela acrescenta que um relacionamento abusivo dificilmente acontece no primeiro encontro e que isso ocorre no convívio gradativamente. Além disso, explica que a violência pode ser física, verbal, moral, sexual e patrimonial.

“Precisamos fazer uma rede de atendimentos para essas mulheres e realizar programas educativos de prevenção contra a violência. Se você ensina desde pequeno, alguns princípios, é mais fácil de lidar quando são adultos e adolescentes, pois já têm esse princípio”, menciona.

As denúncias de agressões podem ser feitas no número 180

*Todos os nomes foram substituídos para não expor os envolvidos