Além das grades: a leitura como caminho para a reintegração social de detentos da Cadeia Pública de Paranaguá


Por Luiza Rampelotti Publicado 25/10/2024 às 09h49

A Cadeia Pública de Paranaguá abriga atualmente cerca de 110 detentos, ultrapassando sua capacidade máxima de 56. O espaço restrito e a ausência de estímulos cognitivos transformam o ambiente em um local ainda mais tenso e desafiador. Além da superlotação, a falta de atividades que possam ocupar a mente de forma construtiva compromete o cumprimento da função social do presídio, que deveria ser a reintegração social dos detentos.

Contudo, iniciativas como os projetos “Transcender” e “Remição de Pena pela Leitura”, coordenados pela 7ª Promotoria de Justiça e pelo Conselho da Comunidade, respectivamente, buscam amenizar essas dificuldades ao oferecer aos detentos oportunidades de aprendizado, reflexão e redução de suas penas. Desta forma, os internos têm encontrado, nos livros, uma forma de escapar simbolicamente das paredes que os aprisionam, enquanto caminham em direção à reintegração social. Mais do que simples momentos de lazer, as ações funcionam como instrumentos de transformação pessoal e uma real chance de diminuição da pena.

O poder da leitura para além das grades

A Cadeia Pública de Paranaguá, como explica a promotora de justiça, Dra. Cibelle Scopel, ao JB Litoral, enfrenta desafios estruturais severos. O espaço, concebido originalmente para abrigar presos provisórios, acomoda atualmente cerca de 110 detentos — alguns já condenados, outros aguardando julgamento. Em um local onde a maioria dos presos passa a maior parte do tempo reclusa em ambientes superlotados e sem atividades que promovam a saúde mental e física, a leitura surge como um alívio.

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A promotora de justiça, Dra. Cibelle Scopel, é a idealizadora do projeto “Transcender”, que visa a arrecadação de livros para disponibilizá-los aos detentos da unidade. (Foto: Maickon Chemure/JB Litoral).

Foi nesse cenário que o “Transcender” nasceu. O projeto, realizados pela 7ª Promotoria de Justiça de Paranaguá, tem como objetivo a arrecadação de livros para disponibilizá-los aos detentos da unidade. “A ideia é transcender o cárcere, para que, de alguma maneira, os presos possam ser transportados para outros lugares por meio da leitura, ao mesmo tempo em que aprendem e se transformam”, comenta Dra. Cibelle.

A iniciativa surgiu de um pedido simples e simbólico de um dos presos durante uma inspeção de rotina do Ministério Público. “Um dos internos me disse: ‘Doutora, tem pouquíssimos livros aqui, a senhora pode conseguir mais livros para nós? Seria bom, porque passamos o tempo e aprendemos’. Aquele pedido me tocou profundamente”, relata a promotora. A proposta, portanto, visa oferecer mais do que lazer: propõe o poder do conhecimento, da reflexão e da educação como agentes de mudança.

A coleta de livros está aberta até o dia 31 de outubro, com pontos de arrecadação espalhados pela cidade, entre eles a sede do Ministério Público, o Fórum Criminal e instituições de ensino como o ISULPAR e a UNESPAR.

Superlotação e realidade no cárcere: um contexto de desafios

A realidade dentro da Cadeia Pública de Paranaguá é árida. Com ambientes destinados a poucos detentos, mas ocupados por mais de 40 em alguns casos, o ambiente é restritivo e, como relata a promotora, bastante precário. Nesse cenário de confinamento quase total — os detentos têm direito a banho de sol apenas três vezes por semana — as oportunidades de ocupação de tempo são praticamente inexistentes.

A leitura traz momentos de descontração e alegria, além de aliviar a ansiedade. Ela proporciona um tempo mais suportável na prisão. O Projeto Transcender é, em essência, uma tentativa de humanizar essa experiência, permitindo que, através dos livros, os detentos possam ‘transcender’ sua realidade de confinamento e se conectar com outros mundos e possibilidades”, argumenta a Dra. Cibelle.

Remição de pena pela leitura: uma porta de saída

Se, por um lado, o “Transcender” garante proporcionar lazer e transformação cultural, o “Projeto de Remição de Pena pela Leitura” oferece aos detentos um caminho prático para diminuir suas penas. Coordenado pela advogada e pedagoga Danielle Pereira Gomes, a iniciativa do Conselho da Comunidade está em pleno funcionamento e já começa a apresentar resultados. Além de prestar assistência aos presos e suas famílias, o Conselho auxilia na fiscalização das penas e na implementação de atividades que visam melhorar as condições de vida dentro do sistema prisional.

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A advogada Danielle Pereira Gomes é voluntária do Conselho da Comunidade e coordenadora do projeto de Remição de Pena pela Leitura. (Foto: Luiza Rampelotti/JB Litoral).

Baseado na Lei de Execução Penal, o projeto de remição pela leitura garante que os presos reduzam até quatro dias de pena para cada livro lido, com um limite de 12 livros por ano. Para isso, o detento deve ler uma obra e redigir uma síntese ou resenha, que é corrigida e avaliada pela advogada. “Atualmente, 13 presos participam do projeto, embora a cadeia tenha mais de 100 internos. Esse número reduzido de participantes se deve tanto à alta rotatividade e à estrutura local, pela segurança, quanto ao fato de muitos serem analfabetos funcionais”, explica Danielle.

A advogada ressalta a importância da leitura no processo de conscientização dos presos, que, apesar de não terem uma formação escolar sólida, demonstram interesse genuíno pelo conteúdo dos livros. “Os livros usados no projeto são, em sua maioria, de cunho pedagógico, com foco em história, geografia e literatura. Embora o nível de alfabetização seja baixo, os detentos conseguem correlacionar o conteúdo das obras com suas próprias vidas, estabelecendo um pensamento crítico, mesmo que de forma inconsciente“, afirma.

Danielle destaca que o projeto também enfrenta desafios estruturais. Com poucos recursos e um número reduzido de servidores — são apenas 13 policiais penais para mais de 100 presos — a execução das atividades é limitada. Ainda assim, a participação e o interesse dos presos são evidentes.

Transformação pessoal e ressocialização

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Cerca de 13 detentos da Cadeia Pública participam do projeto de “Remição de Pena pela Leitura”; além disso, aqueles que desejarem, têm acesso a livros como forma de entretenimento. (Foto: Arquivo)

A promoção da leitura como forma de redução de pena não é apenas uma estratégia para aliviar o sistema penitenciário sobrecarregado. Ela vai além: é uma proposta de ressocialização real. Ao incentivar o contato com a literatura, os projetos proporcionam aos detentos a oportunidade de reflexão e autoconhecimento, essenciais para a reintegração social após o cumprimento da pena.

Os presos precisam de atividades que ofereçam alguma perspectiva de futuro. A leitura não só ocupa o tempo ocioso, mas também oferece momentos de introspecção e conhecimento. Eles podem sair do sistema com uma visão diferente, mais preparados para a vida fora das grades”, acredita Dra. Cibelle.

As iniciativas citadas são exemplos claros de que a reintegração social não é uma tarefa exclusiva do sistema penal. A participação da sociedade civil é fundamental para o sucesso dessas iniciativas. “Se cada cidadão doar um livro, estaremos contribuindo não só para o lazer desses presos, mas também para seu desenvolvimento intelectual e pessoal”, reforça Dra. Cibelle.

Os livros podem ser doados em diversos pontos de coleta espalhados pela cidade de Paranaguá, até o dia 31 de outubro. Entre os locais, estão a sede do Ministério Público, o Fórum Criminal, ISULPAR, UNESPAR, o 9º Batalhão de Polícia Militar, o 8º Grupamento de Bombeiros e a Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Paranaguá (ACIAP).

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