As profissões que estão resistindo ou sumindo, impactadas pela tecnologia e pela Lei dos Portos


Por Redação Publicado 10/04/2021 às 12h16 Atualizado 15/02/2024 às 22h53
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Por Brayan Valêncio e Katia Brembatti

Antes eles eram muitos, dominando o cenário profissional em Paranaguá. Hoje, estão cada vez em menor número, lutando para se manter imprescindíveis na atividade portuária. Os avanços tecnológicos somados às mudanças estabelecidas pela revogada Lei 8630/93, hoje, Lei Federal 12.815/13, conhecida como Lei de Modernização dos Portos, afetaram diretamente os Trabalhadores Portuários Avulsos, os TPAs, grupos organizados que viram suas profissões passarem de essenciais para quase extintas.

O JB Litoral preparou uma reportagem especial, mostrando como foi esse processo de transição, as dificuldades encontradas pelos trabalhadores e o que ainda pode acontecer nos próximos anos, num panorama em constante substituição da atividade braçal pela mecanização, digitalização e robotização. Vários profissionais foram entrevistados para contar como era no passado e como estão se preparando para lidar com a realidade atual.

Conferentes

Responsáveis por verificar a carga e a descarga, os conferentes já foram muito numerosos na rotina do porto de Paranaguá. Mas viram os quadros serem enxugados pouco a pouco, após a consolidação das Lei de Modernização dos Portos que não permitiu mais a contratação de profissionais avulsos por tempo indeterminado e também devido ao processo de automatização. Agora, na pandemia, são apenas 65 profissionais, checando diariamente peso, quantidade e qualidade dos produtos que chegam e que partem do porto.

Os conferentes viram a rotina produtiva ser bastante alterada após a Lei de Modernização dos Portos. Foto/Appa

Na área desde 1979, Carlos Tortato, ex-prefeito de Paranaguá e líder sindical, acompanhou a redução sequencial na quantidade desses profissionais nos últimos 30 anos. “Desde a Lei de Modernização dos Portos isso é uma tendência, não dá para negar, visto que o processo de movimentação de carga sofreu grandes automações”, explica.

Antes, a conferência era necessária para praticamente todas as mercadorias: desde os sacos de café, madeiras, móveis, congelados e até os fardos de algodão. Absolutamente tudo era contado. Mas as coisas começaram a ser alteradas com a chegada expressiva dos contêineres e com as pesagens computadorizadas. “Hoje o conferente, por exemplo, não checa mais tonelada por tonelada. O resultado sai na balança”. Também mudou muito o tempo médio de atracagem dos navios, o que dificulta a inspeção manual. “No nosso caso, a tecnologia afetou bastante. Um navio que trazia carga solta ou carga geral, ficava sete ou oito dias operando no cais. Hoje raramente um navio fica mais de dois dias atracado”, conta.

Tortato destaca, porém, que a automação, com serviços pré-definidos e padrões, não tem o cuidado, o detalhe e a confiabilidade da conferência feita por pessoas. Portanto, a classe acredita ainda ser necessária para o trabalho portuário, buscando alternativas de coexistir com as máquinas e demonstrando para as organizações patronais de que o trabalho foi alterado pelos avanços tecnológicos, mas não extinguiu a necessidade de um conferente in loco.

Bloco

Uma das primeiras profissões que sentiu a urgência de se reinventar foi a do chamado bloco, responsável por toda a apeação e desapeação, ou seja, a amarração dos produtos que estão saindo com o navio e a desamarração dos que chegam ao porto. Outra função primordial da categoria era a higienização dos navios, mas, recentemente o Porto de Paranaguá passou a contratar pessoas para essa função específica.

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-Responsável por toda parte de segurança no transporte das cargas, o bloco se viu obrigado a explorar novas funções para se manter na ativa. Foto: Claudio Neves/Appa

Na tarefa de apear e desapear, os trabalhadores atuam para garantir a segurança das cargas, trabalhando em conjunto com os estivadores dentro das embarcações. Com as mudanças tecnológicas das últimas décadas, os 220 profissionais da área que sobraram deixaram de ter uma atividade exclusiva e passaram a ser multifuncionais, auxiliando as outras quatro funções que ainda atuam no Porto.

Consertadores

Todos os reparos ao longo do processo de carga e descarga eram feitos pelos consertadores. Com a adesão cada vez mais intensa aos contêineres, a atividade passou a ser menos necessária e, aos poucos, fez os profissionais da área buscarem outras qualificações.

Oficialmente, a profissão se fundiu com a de vigias portuários em março de 2020 e os 30 consertadores passaram a ser vinculados ao sindicato dos Vigias Portuários, sendo considerados da profissão de faina (trabalho a bordo de um navio) facultativa. O fim da função já se discutia desde o começo dos anos 2000, quando não havia mais tantas avarias no processo portuário. Com a diminuição do período de estadia dos navios no porto, houve uma aceleração no processo de extinção da classe, que se consolidou há cerca de um ano.

Vigias

Responsáveis pelo controle de quem entra e sai dos navios, os vigias portuários também tiveram a rotina alterada pela chegada de novas tecnologias, mas, ao contrário de outros TPAs, a categoria não sofreu uma queda exponencial na quantidade de profissionais, se mantendo no número de 95 trabalhadores atuantes. O pouco impacto se deve ao fato de que ainda é necessário o controle visual de quem entra e sai das embarcações.

Apesar de não trabalhar armado, o vigia também é responsável pela segurança do local, com a função de evitar, por exemplo, contrabando ou invasões. “Se eu estou no navio e vejo um vazamento de óleo, eu tenho que procurar as autoridades. Nossa função principal é cuidar de qualquer coisa ilícita”, relata Marcos Ventura Alves, vigia portuário desde 1995.

“O sistema da nossa escala mudou. Antes era manual, agora é tudo via web. A tecnologia tira um pouco a mão de obra, mas ela veio para modernizar e não para atrapalhar. Tem aparelho que antes precisava de quatro ou cinco pessoas e agora uma pessoa faz tudo”, conta o vigia, que também é sindicalista.

Ele menciona que a facilidade proporcionada pelas inovações tecnológicas mais favoreceu do que atrapalhou. Um exemplo é a entrada do porto, que antes provocava fila, por causa da checagem individual de crachás. Hoje a verificação é biométrica. Também alterou a utilização de carros dentro das instalações portuárias, antes irrestrita a qualquer pessoa. Agora só circulam pelo porto de Paranaguá carros com permissão.

“A tecnologia mudou para todos, principalmente para o empregador que deixa de pagar dez e passa a pagar duas pessoas. Só que nós, os vigias, somos um por navio e essa presença continua sendo essencial porque ainda tem que ter o controle”, explica Marcos, que vê a tecnologia só favorecendo os profissionais da área. Ele acredita que, mesmo com as novas tendências e formas de trabalhar, o vigia continuará sendo necessário para que todo o processo portuário ocorra sem problemas graves ou incidentes.

Estiva

Uma das mais antigas profissões portuárias e, possivelmente, a que mais vem aguentando o impacto das mudanças, o estiva é o trabalhador que descarrega os materiais que estão chegando ou coloca no navio os produtos que irão ser despachados. Hoje, mesmo durante a pandemia, há cerca de mil profissionais atuantes no porto de Paranaguá. A categoria se faz necessária porque o estivador opera máquinas e equipamentos, que vão desde simples pás, a grandes guinchos e empilhadeiras.

Os profissionais sentiram a mudança, principalmente, na questão da agilidade e da logística, devido ao aprimoramento dos sistemas portuários. A imagem – que muita gente tem na cabeça – de um trabalhador carregando pesados sacos nas costas não combina em nada com a atualidade do serviço. Os estivadores aprenderam a operar máquinas e seguem essenciais.

Arrumadores

Ao contrário dos estivas, que trabalham a bordo, os arrumadores atuam em terra, geralmente no cais, fazendo a preparação da carga ou da descarga dos navios. A função também é conhecida como “capatazia”. Ou seja, eles preparam o produto que irá embarcar ou que acaba de ser recebido. Com as novas formas de trabalhar, os arrumadores passaram a operar guindastes e empilhadeiras. Toda a parte de movimentação das mercadorias em terra é feita por um profissional da área. Hoje, há cerca de 500 desses profissionais no porto de Paranaguá.

Com a chegada de mais contêineres, os capatazes passaram a trabalhar também com guindastes para auxiliar na movimentação terrestre das mercadorias Foto: Claudio Neves/APPA

Filho de arrumador e atuando na área há 28 anos, Oziel Felisbino comenta que, antigamente, o profissional precisava fazer um trabalho mais manual e eram necessários grupos maiores. “Mas, conforme foi evoluindo a tecnologia, as equipes foram diminuindo”, diz. Porém, apesar de forçar a redução nos números, a tecnologia abriu portas para renovar a área, com trabalhadores atuando de outras formas, com funcionários vinculados e de rodízio.

Oziel, representante do sindicato que completa 22 anos no dia 11 de abril, acredita que foi possível capacitar todos os profissionais que se mantiveram na classe, como por exemplo, fornecendo cursos de operadores de contêineres. “A tecnologia diminuiu bastante as profissões, só que nascem outras profissões com ela. Não tem como não acompanhar a inovação, principalmente se você tiver que produzir mais. A tonelagem que fazíamos 20 anos atrás hoje já está superada”.

Mesmo auxiliando na rotina produtiva, a redução de mão de obra é o ponto negativo que a tecnologia trouxe para os arrumadores. “A gente tem que evoluir, mas precisamos ver os dois parâmetros: a diminuição do pessoal, mas ao mesmo tempo, a agilidade no trabalho. A gente tem que se reinventar e estar atento às mudanças”, concluiu o arrumador.

Despachantes

Considerada uma classe fora dos TPAs, os despachantes são essenciais para que toda a logística portuária, entre importador e exportador, aconteça sem prejuízos financeiros e de tempo. São os profissionais que colocam a mão na massa, fazendo contato com os terminais alfandegários e secundários, além de acompanhar todo o processo legal das cargas. Antigamente, tudo era feito no papel e hoje os processos são informatizados.

Dulci Eccel, fundadora da DKE Despachante aduaneiro e bastante conhecida na região, viu a categoria ir de “referência, muita respeitada, fundamental nas atividades portuárias e fonte de informações e distribuidora dos documentos em todas as fases do processo” a se transformar em “depreciativa e sendo colocada como último quesito”.

Segundo a ajudante de despachante que está há 30 anos em atividade, todo profissional da área precisa ter um registro na Receita Federal, baseado no regulamento aduaneiro, mas já não há mais esse cuidado por parte dos órgãos responsáveis pelo porto, já que qualquer outra pessoa pode realizar as atividades de um despachante. Há, também, situações em que terminais passaram a fazer o contato direto com os clientes e a se encarregar dos procedimentos legais, dispensando a atuação dos despachantes. As principais queixas foram direcionadas ao Terminal de Contêineres de Paranaguá (TCP).

Outra dificuldade, segundo Vanderlei Maia, despachante desde os anos 2000, é a proibição de utilizar o telefone celular dentro de algumas partes da região portuária. Os profissionais só podem usar o aparelho em algumas situações específicas, e portando um documento de autorização. Para o despachante, essa restrição atrapalha as atividades. “Todo profissional tem direito a usar a tecnologia para auxiliar seu trabalho, inclusive esse é o grande objetivo da Lei dos Portos, né? Então, por que nós temos que abrir mão de um facilitador da nossa rotina?”, questiona.

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Leocadio Dias, Dulci Eccel e Vanderlei Maia são profissionais que se destacam na rotina de despachantes aduaneiros em Paranaguá. Foto/JB Litoral

“Eu me sinto impotente. Eu amo minha profissão”

Dulci lamenta o momento que vive. “Eu me sinto impotente. Eu amo a minha profissão, mas é muito difícil se manter com um terminal que monopoliza. Não somos contra a tecnologia, nós só queremos estar dentro do processo”, afirma a fundadora da DKE, que chegou a ter 15 profissionais trabalhando em sua empresa. “Hoje, com a pandemia, ficamos em apenas 3. E o que entra, mal paga o que temos aqui. Às vezes, pegamos um trabalho de R$ 50 porque esse dinheiro vai ser o valor da minha conta de água no final do mês”.

Para a presidente do sindicato dos Despachantes Aduaneiros dos Estados do Paraná e Santa Catarina, Izabel Cristina Martins do Carmo, a digitalização interferiu em todas as profissões, forçando os trabalhadores a se qualificarem. “A modernização dos portos e a abertura de terminais não poderiam vir se não tivéssemos novas tecnologias. O despachante aduaneiro teve que sair daquela posição de ponta, já que não foi nomeado para entregar papel e sim para dominar um sistema e dar suporte”, avalia. Izabel ainda afirma que, para debater os problemas cotidianos da classe, ocorrem mensalmente reuniões com órgãos intervenientes e que o sindicato está aberto a receber as demandas dos trabalhadores.

Apesar de o cenário não parecer favorável em alguns aspectos, os profissionais acreditam que o futuro será melhor devido à retomada das atividades econômicas e da necessidade de um profissional que realize todo o processo. “Temos esperança de podermos trabalhar para honrarmos nossas dívidas acumuladas ao longo de toda essa tragédia que é a pandemia. Enquanto houver clientes que confiam no meu trabalho e no da minha equipe, não irei desistir”, concluiu Dulci.

Outro lado

Procurado pelo JB Litoral, sobre as queixas dos despachantes, o TCP encaminhou uma nota à reportagem, afirmando que “a empresa acompanha a tendência mundial de automatização de processos que visa, unicamente, tornar a operação por Paranaguá mais ágil e menos onerosa para toda a cadeia logística e produtiva do País. Iniciativas voltadas à automatização tornam o trabalho do profissional de despacho aduaneiro menos oneroso e mais célere”.

Em relação ao uso do celular na zona alfandegada, a empresa informou que é permitido que se adentre no Terminal portando o aparelho, entretanto, a autorização prévia para uso é obrigatória. “A medida visa a segurança das pessoas e das operações, evitando distrações no pátio, mitigando os riscos de acidentes, além de proteger e controlar o compartilhamento de imagens da área alfandegada”, justifica.

O texto diz, ainda, que a gestão de mão de obra é item de extrema importância e que “a migração do modelo avulso para o modelo vinculado reflete impactos positivos na gestão de saúde, segurança, qualidade e custos em toda a cadeia logística portuária”. Por fim, o TCP declara que, “ao longo dos anos, vem promovendo alinhamento permanente e contínuo com as diferentes categorias profissionais, e que as soluções já implementadas além de legalmente amparadas, são frutos de ampla negociação”.

Os representantes sindicais das categorias estiva e bloco e da extinta categoria consertadores foram procurados ao longo de duas semanas, mas, até o fechamento desta reportagem, os contatados não responderam às solicitações de entrevistas.

O papel do OGMO na mudança do perfil dos trabalhadores do porto de Paranaguá

Uma estrutura que acompanhou bem de perto a transformação profissional na região portuária foi o Órgão de Gestão de Mão de Obra (OGMO). A instituição foi criada em 1993, pela primeira lei dos portos, e teve as atribuições mantidas pela legislação de 2013. Antes da existência do OGMO, o gerenciamento dos trabalhadores era feito pelos sindicatos. Naquela época, o serviço era basicamente braçal, empregando mais pessoal. Eram cerca de 5 mil profissionais na década de 90. À medida que o trabalho foi sendo automatizado e mecanizado, o número caiu para os atuais 2,2 mil.

A diretora executiva do OGMO, Shana Carolina Colaço Vaz Bertol, está no posto há quase quatro anos, mas desde 2006 trabalha no órgão, tendo atuado em diversas funções. Ela conta que, entre as principais atividades, está a distribuição de mão de obra de forma mais igualitária, com escalas eletrônicas em formato de rodízio. “Hoje, toda a escalação do trabalhador portuário avulso é feita em meio digital, no nosso sistema web, no nosso aplicativo”, comenta, acrescentando que muito antes da legislação proibir as escalações presenciais, o OGMO de Paranaguá já estava informatizado.

Além do respeito a todas as normas legais – de saúde e segurança do trabalho, por exemplo – o órgão também é responsável pela qualificação dos trabalhadores portuários avulsos. “Nós acompanhamos todos esses avanços e buscamos sempre trazer treinamentos que respondem a esse momento tecnológico no porto”, garante. A diretora executiva conta que recentemente foi ofertado um curso de atualização de equipamentos com uso de simuladores. “O propósito do OGMO é apoiar o desenvolvimento portuário, ser um facilitador, tanto para trabalhador avulso, quanto para o operador, buscando sempre a eficiência, porque um porto que produz bem gera ganho para toda a cadeia produtiva”, destaca.

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