Hospital Angelina Caron realiza tratamento inadequado a pacientes de Paranaguá (Parte I e II)
O JB Litoral trará, em duas edições, o retrato do atendimento a pacientes de Paranaguá, com câncer de mama, que se tratam no Hospital Angelina Caron. Elas denunciam a falta de humanização e realização de exames fundamentais no tratamento contra a doença. Acompanhe, nesta reportagem, a primeira parte das denúncias.
O câncer de mama tem se configurado como uma das grandes preocupações da saúde pública, em razão da elevação do número de casos novos a cada ano. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (INCA), para o Brasil, estimam-se 59.700 casos novos da doença em 2019, com um risco considerado de 56 ocorrências a cada 100 mil mulheres.
Em Paranaguá, o Instituto Peito Aberto atua, desde 2015, como um lugar de acolhimento para mulheres que receberam o diagnóstico de câncer, especialmente o de mama. Além de apoio emocional, elas também recebem auxílio de profissionais da saúde, como fisioterapeutas, psicólogos, nutricionistas e dentistas, entre outros. São vários profissionais voluntários que dão suporte a cada uma e, o melhor, de forma gratuita.
Receber o diagnóstico de uma doença agressiva, como esta, nunca é fácil, ultrapassa os aspectos físico-biológicos e envolve a dimensão existencial da mulher, em sua sexualidade, maternidade, autoimagem e estética. Ela pode ter consequências diversas, que se manifestam como desconforto físico e psicológico, ansiedade, depressão, mudanças na autoimagem e baixa na autoestima, alterações de todos os hábitos e do estilo de vida, medo quanto ao procedimento, a possibilidade de recorrência da doença e o temor da morte. Mas, o pior de todos os sentimentos é a impotência quanto à cura e o medo de não estar realizando o tratamento de forma adequada.
Exame fundamental não é realizado
Segundo pacientes do Instituto Peito Aberto, que realizam terapia contra a doença no Hospital Angelina Caron, em Curitiba, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), o atendimento realizado no local deixa muito a desejar, trazendo mais uma preocupação àquelas que já se encontram em situação de vulnerabilidade e fraqueza, tanto física, quanto mental. Por temer represálias, elas não desejam se identificar, mas, a partir da apuração dos fatos para a reportagem, o JB Litoral descobriu que 22 mulheres, atendidas pelo Instituto e que se tratam no Angelina Caron, também têm muitas críticas em relação ao estabelecimento.
Maria (Nome fictício )de 40 anos, descobriu o câncer de mama em janeiro de 2018, em Paranaguá. Sem plano de saúde, recorreu ao SUS para proceder a cura da doença e foi chamada pelo Hospital Angelina Caron, em Campina Grande do Sul, para realizar a cirurgia, em maio do mesmo ano. “Fiz a cirurgia, quimioterapia e radioterapia e, até então, achei que era só isto. Após conhecer o Instituto Peito Aberto as meninas foram me orientando e ajudando, me explicaram que eu deveria ter feito o exame de imunoistoquímica completo, antes da cirurgia, que eu não fiz pelo Angelina Caron”, conta.
Para entender do que se trata esta análise, a reportagem procurou a Mastologista Drª Ana Carolina Marcondes Machado Leprevost, de Paranaguá, que, em parceria com o Instituto, atende pacientes da instituição com desconto. Foi ela quem descobriu, por meio do prontuário de algumas mulheres que se tratam no Angelina Caron, que a imunoistoquímica não estava sendo realizada de forma completa.
“O câncer de mama não é uma única doença, ele tem um nome para várias doenças diferentes. O que diferencia um tipo de câncer do outro, e me permite dizer com qual tratamento a pessoa irá se beneficiar, é a imunoistoquímica, que é a mais importante, e o SUS cobre. Avalia-se alguns parâmetros da célula tumoral, qual a velocidade de proliferação destas células e, também, dá o resultado da proteína chamada HER-2 que confere, quando expressa nas células do câncer, um crescimento tumoral mais rápido e agressivo. E este é o ponto que não é observado nos prontuários”, explica.
Falta do exame pode multiplicar tumor
Ou seja, o gene HER-2, responsável pela produção da proteína de mesmo nome, tem um papel regulador nas células com funcionamento normal; no entanto, um erro aleatório neste gene pode levar ao desenvolvimento de câncer. Na amostra de tecido mamário, deve ser analisado e pesquisado o aumento (ou sobre expressão) do receptor HER-2 (existente na membrana das células tumorais), ou do gene e, se houver esta alteração, isto corresponde a um subtipo específico de câncer de mama, denominado HER-2 Positivo, que está associado a uma maior agressividade da doença. Analisar esta proteína é tão importante porque é ela que transmite sinais os quais orientam o crescimento celular, desde o exterior da célula até seu núcleo.
“Este é um resultado fundamental para definir se ela vai precisar de quimioterapia e qual o tipo que precisará. No prontuário delas não existe o resultado do HER-2, isto mostra que a análise foi feita de maneira incompleta”, diz a mastologista.
Segundo a médica, o maior problema desta análise ser feita apenas parcialmente, é que as pacientes que expressam esta proteína podem ser prejudicadas de forma irreversível.
“Elas deveriam receber o medicamento chamado Trastuzumabe, mais conhecido como Herceptin, um anticorpo monoclonal que se liga e bloqueia esta proteína na célula, desta forma, o tumor não se multiplica. Existem milhares de estudos que comprovam o benefício da aplicação deste medicamento; mulheres que receberam passaram de um prognóstico muito ruim para bom”.
Drª Ana Carolina esclarece que, deixar de administrar este medicamento para aquelas que são comprovadamente HER-2 positivo, é prejudicial ao procedimento de cura. O Trastuzumabe é aplicado de forma conjunta com a quimioterapia e diminui em, pelo menos, 30% o risco de reincidência da doença.
“Quando você deixa de detectar o problema, você perde a oportunidade de realizar uma intervenção que irá aumentar a sobrevida da paciente”, afirma.
“Precisei pagar pelo exame”
Este foi o caso de Maria e de Lucia (Nome fictício), de 39 anos, que, após passarem pela mastologista em Paranaguá, descobriram a importância e necessidade deste exame. “Se eu não tivesse consultado a Drª Ana, não iria nem saber que eu precisava. Fiz a imunoistoquímica quase um ano depois da cirurgia e, infelizmente, voltou com o resultado positivo, ou seja, preciso tomar o medicamento. Apesar de o SUS fornecer, como já havia passado o tempo normal para realização, precisei pagar para um laboratório particular, custou quase R$ 600, conseguido por meio do Instituto Peito Aberto. Mas, o mais importante é que consegui, pois existe um tempo determinado para que o medicamento ainda faça efeito, que é de um ano após a cirurgia, e este tempo estava quase acabando”, relata Maria.
Lúcia passou pelo mesmo processo. Fez o exame de maneira atrasada, quase no final do período de eficácia do medicamento, e teve a triste surpresa de receber o resultado positivo para a HER-2. “Foi um baque para mim. Pedi transferência de hospital para o Erasto Gaertner, para tomar o medicamento lá, pois eu não conseguia mais ficar no Angelina Caron, mas nunca retornaram. Graças a Deus que, neste meio tempo, fiz o plano de saúde e continuei com os cuidados aqui em Paranaguá. Finalizei agora as aplicações, foram 17 injeções de Herceptin, que eu deveria ter tomado já no início. Fui tratada muito mal naquele hospital, pois quando levei a carta da Drª Ana, questionando a respeito deste exame, o Oncologista responsável gritou comigo na frente de todos, dizendo para eu me tratar com ela. Outra coisa, por Lei, eles são obrigados a fazer a reconstrução da mama, e nem falam sobre isto. O atendimento lá é desumano, as consultas são realizadas em grupo. É um constrangimento”, relembra a paciente, que hoje está curada.
MPF arquiva investigação contra supostas irregularidades, mas pacientes do HAC denunciam tratamento desumano às vítimas de câncer de mama (Parte II)
O JB Litoral traz a última reportagem da série exclusiva sobre câncer de mama, onde foram entrevistadas pacientes do Hospital Angelina Caron, residentes em Paranaguá. Estas mulheres, que preferiram não se identificar, denunciaram que o tratamento contra a doença é feito de maneira inadequada, uma vez que um exame primordial, para detectar o tipo de tumor, não é realizado de forma completa.
No encerramento da série, as denúncias dizem respeito à falta de humanização no cuidado com estas mulheres, que se deslocam, sempre que necessário, à Capital para realizar as intervenções obrigatórias, como quimioterapia, radioterapia e consultas para acompanhamento do diagnóstico.
De acordo com Maria (nome fictício), assim que foi diagnosticada, em 2018, realizou a cirurgia no hospital. “Não passei por nenhum profissional anteriormente, nem psicólogo e fisioterapeuta. Só quando estive no Instituto Peito Aberto é que me consultei com estes especialistas, tão necessários para quem enfrenta esta doença, principalmente o psicólogo. Eu nem sabia que teria direito se não fosse pelo Instituto”, diz.
Importância do Psicólogo
O combate ao câncer de mama, em boa parcela das situações, impacta diretamente nas condições físicas, emocionais e sociais da paciente, pois são obrigadas a conviver tanto com a possibilidade da mutilação quanto com a da morte. Neste contexto, o psicólogo tem um papel fundamental no acompanhamento para auxiliar e oferecer um suporte à diagnosticada e sua família.
A Psicóloga Adriana Grosse, que atua no Instituto Peito Aberto, explica que o acompanhamento, no momento do tratamento, deve favorecer um espaço de escuta e acolhimento à paciente. “A partir disto, questões referentes à doença, como compreensão do diagnóstico; adesão ao tratamento; estratégias de enfrentamento, entre outras, são trabalhadas”.
Em casos de extração da mama, por exemplo, é este profissional quem ajuda a superar o processo traumático e promover o reencontro desta mulher com sua sexualidade e autoestima. Além disto, ele também dá suporte à família, que precisa se adequar à nova realidade, o que pode desencadear mais sofrimento. “Por meio deste trabalho, é possível enxergar o ser humano como um ser integral e, desta forma, é correto afirmar que o acompanhamento psicológico promove a saúde e reduz o adoecimento como um todo”, conclui.
Consultas coletivas
Após a cirurgia, Maria conta que, durante as consultas rotineiras, que servem para passar informações acerca do andamento do tratamento e sobre a própria doença, o cenário é caótico.
“O tratamento lá não tem humanização, não tem atenção. Nos atendimentos, que acontecem em média a cada três meses, nas quais deveríamos poder conversar a respeito dos sintomas, das preocupações e, também, pegar os medicamentos necessários, o que acontece é um constrangimento coletivo. São várias mulheres na mesma sala, tendo a consulta no mesmo momento. Não existe privacidade, se preciso falar sobre dor em algum lugar íntimo, não falo, pois é constrangedor. Vou para o hospital e volto para Paranaguá com a minha dor, e aqui procuro um médico particular para entender o que estou passando”, descreve.
A paciente explica que já foi questionado o motivo deste momento tão importante ser realizado de forma coletiva, mas não é justificado. “Nós queremos saber o porquê isto acontece, porque somente lá é assim, mas nunca foi justificado. São mais de 30 pessoas consultando ao mesmo tempo, ouvindo, muitas vezes, diagnósticos terminais juntamente com a pessoa que está recebendo a notícia. É uma situação horrível. A gente quer informação pelo menos, chegar ao hospital e o médico dar atenção. Mas o Oncologista responsável nos trata como se fôssemos apenas mais um número”, diz.
A entrevista é finalizada sob muita emoção das pacientes que, reunidas, se entendem mutuamente, uma vez que todas passaram pela mesma situação, no mesmo local. “É um trauma enorme, já pedi para me transferir de hospital e até agora nada, já faz meses. Será que este exame, que eu tinha que fazer e não foi realizado, não poderia me ajudar? Como está o meu tratamento? Será que fui curada? Eu não sei, ninguém me fala nada”, conclui Maria.
Da mesma forma, Lúcia (nome fictício) relembra que não conseguiu ser transferida para outro hospital. “Graças a Deus consegui aderir ao plano de saúde, porque eu não conseguia mais entrar no Angelina Caron sem uma crise de choro”.
Ação judicial
De acordo com a idealizadora do Instituto Peito Aberto, Fabiana Parro, as 22 mulheres que recebem auxílio da instituição e são tratadas pelo Angelina Caron realizam as mesmas críticas sobre o estabelecimento. “Por isto, decidimos levar o caso até o Ministério Público Federal (MPF), que está investigando o protocolo de atendimento ofertado pelo Hospital Angelina Caron a pacientes com câncer de mama”, explica. Entretanto, em relatório parcial no despacho nº 9044/2019, no dia 14 de junho, o MPF promoveu o arquivamento da notícia de fato, uma vez que concluiu que o Serviço de Oncologia do hospital não apresenta irregularidades, após o estabelecimento se pronunciar acerca dos questionamentos efetuados.
Uma das respostas informa sobre a realização do exame de imuno-histoquímica. “Em relação ao exame imuno-histoquímico, o ofício aduz que a inclusão de outros marcadores que não o Receptor Estrogênico fica a critério da solicitação médica. Entretanto, ressalta que o SUS disponibiliza apenas 90 marcadores por mês, sendo que a demanda do hospital seria de 300 marcadores. Desta forma, enfatiza que a defasagem no número de marcadores fornecidos acarreta em fila de espera pelo exame, e que cabe a cada profissional médico fazer uso criterioso dos marcadores disponíveis. Por fim, a chamada vacina Herceptin não é, de fato, uma vacina, mas um Anticorpo Monoclonal Humanizado. Ainda, é medicamento utilizado em protocolos específicos e possui contraindicações”, informa o hospital.
Segundo o Advogado do Instituto, Thiago Osternack, medidas individuais poderão ser adotadas contra o hospital. “Estamos encaminhando as pacientes caso a caso, conforme suas necessidades. Além disto, ainda há mais um procedimento em trâmite perante a Procuradoria da República no Paraná, em Paranaguá, da qual aguardamos conclusão”, afirma.
Nota do Angelina Caron nega denúncias
O JB Litoral entrou em contato com a assessoria de imprensa do hospital, enviando questionamentos acerca das situações denunciadas. Entretanto, em um primeiro momento, a reportagem obteve o seguinte retorno: “Para dar encaminhamento a esta demanda, precisamos do nome das pacientes. O Angelina Caron atende milhares delas todos os dias, de várias cidades do Paraná. Precisamos saber os casos pontuais, para levantar, internamente, os prontuários clínicos e direcionar as respostas”. Porém, de acordo com a Constituição Federal, em seu artigo 5º, é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.
Desta forma, o hospital se limitou a enviar uma nota que, entre outras informações, diz: “o HAC esclarece que cada consulta e cada tratamento são feitos de forma individualizada, e que as informações detalhadas sobre prontuários clínicos são repassadas apenas para pacientes e familiares, quando assim identificados.
No Serviço de Oncologia, cerca de 240 pessoas recebem atendimento ambulatorial por dia e dispõe de equipe multidisciplinar, com médicos, farmacêutico, enfermeiro oncológico, psicólogo, nutricionista e assistente social. A solicitação de exames é feita pelos médicos, seguindo critérios e protocolos profissionais, e a disponibilidade autorizada pela Secretaria Estadual da Saúde. Em relação aos medicamentos, que são fornecidos pelo Cemepar (Centro de Medicamentos do Paraná), sua prescrição também segue protocolos específicos, considerando-se as contraindicações que devem ser respeitadas, algumas graves, como insuficiência cardíaca”.