Estudante de 22 anos é o primeiro surdocego a ingressar na Unespar, em Paranaguá


Por Luiza Rampelotti Publicado 22/03/2022 às 11h53 Atualizado 17/02/2024 às 04h29

Contato, mãos, gestos. A principal forma de interação de Jaederson Martins Júnior, de 22 anos, com o mundo é por meio de sinais e toque. Surdo desde que nasceu, somente em 2019 descobriu que, na verdade, sua deficiência é a surdocegueira. A condição não o intimidou, pelo contrário, o impulsionou – e neste ano de 2022, se tornou o primeiro aluno surdocego a ser aprovado no vestibular da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), em Paranaguá.

Paranaguá inaugura a Central de Libras para aumentar a inclusão de deficientes no município

Em janeiro, ele prestou o vestibular no campus da cidade e, em 7 de março, recebeu o resultado que tanto almejava: aprovado e com ótima colocação. “Tive muita confiança em Deus. Foi um vestibular especial, com uma prova de redação, fiquei ansioso pela resposta e nota. Quando saiu, chorei muito e ri ao mesmo tempo, fiquei muito feliz, minha família também, ainda mais por eu ter sido o segundo colocado na classificação geral”, conta Jaederson ao JB Litoral.

Agora, o jovem dá início aos estudos no ensino superior, no curso de pedagogia. As aulas começam nesta segunda-feira (21), já no formato presencial. “Me imagino um pedagogo em uma escola com crianças ouvintes e surdas, ou numa escola bilíngue, ou ensinando libras. Eu amo ensinar. Acredito que eu vou me sair bem na faculdade”, admite.

Jaederson é um exemplo para que outras crianças e jovens surdocegas se espelhem nele, se identifiquem e tenham a mesma força e coragem para vencerem os desafios impostos pela especificidade. Porém, é preciso informar a população a respeito da deficiência, que é pouco conhecida e, por isso, muitas pessoas não se reconhecem na condição, sendo prejudicadas pela falta de tratamento e cuidados adequados.

O que é a surdocegueira?

O indivíduo surdocego não é uma pessoa cega que não possa ver, nem um surdo que não possa ouvir. Ela tem uma deficiência multissensorial e é privada do uso dos seus sentidos espaciais e de distância. Existem aquelas que têm baixa visão ou audição; aqueles que não ouvem, mas enxergam um pouco ou o contrário; e tem os que não enxergam ou não escutam absolutamente nada.

No caso de Jaederson, foi a dificuldade para enxergar de longe, bem como a sensibilidade a excesso de luminosidade que despertou a consciência de sua condição, em 2019. A estimativa é de que existam cerca de 40 mil surdocegos no Brasil, de acordo com a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis). 

A surdocegueira precisa ser tratada de forma diferenciada e, devido às poucas informações sobre a deficiência, não há procura para serviços específicos. Mas isso começou a mudar no ano de 2019, quando a diretora geral do Colégio Estadual Vidal Vanhoni, Carla Renata Teles, e a professora de educação especial Kathiely Balduíno decidiram abrir o primeiro Centro de Atendimento Especializado em Surdocegueira (CAEE) do litoral.

Já tínhamos o Atendimento Especializado Surdez na escola, no período da manhã, para aqueles alunos surdos, que estudavam aqui ou em outros colégios do litoral, tivessem um atendimento diferenciado. Mas na parte da tarde a sala ficava fechada. Na época, o Vidal Vanhoni estava com altos índices no IDEB e pedimos ao Núcleo Regional de Educação que autorizassem a criação do CAEE Surdocegueira, e eles aprovaram porque já estavam vendo o trabalho que desempenhamos aqui, principalmente com os surdos”, relembra Carla.

Única do Litoral com atendimento especializado

Ela explica que, a partir daí, foram surgindo as ideias de abordagens para o CAEE Surdocegueira. A diretora destaca que o trabalho pedagógico realizado no centro é totalmente voltado às necessidades dos alunos – as professoras fazem a adaptação curricular, transcrição, adaptação de materiais, grupo de estudos, mas, também, ensinam sobre a vida, conhecimentos gerais, autonomia e independência para os estudantes, pois eles precisam saber se comunicar com eficácia. “Não é só um trabalho pedagógico, mas, sim, social”, diz.

Para os alunos surdos e surdocegos serem atendidos no CAEE do Vidal Vanhoni, é necessário que já tenham sido alfabetizados em sua primeira língua – libras e/ou libras tátil na educação infantil e ensino fundamental. No Litoral do Paraná, somente Paranaguá conta com uma escola que ofereça essa educação especializada: a Escola Bilíngue para Surdos “Nydia Moreira Garcêz”, que recebe estudantes de toda a região.

Professora Karina e diretora Carla falam com orgulho sobre o CAEE Surdocegueira do Vidal Vanhoni. Foto: Diogo Monteiro/JB Litoral

A professora do CAEE, Karina Costa, explica que é fundamental para as pessoas com essas condições serem alfabetizadas em uma escola para surdos e, depois desses anos iniciais, participarem do ensino regular. “A criança surda e surdacega precisa estar inserida em sua cultura, aprender sua língua, sua identidade, a se comunicar com outras e, no ensino regular isso não acontece, porque há somente uma professora intérprete, então eles não aprendem a se comunicar por libras. Essa fase de aquisição da língua, da 1ª a 5ª série, é crucial”, comenta.

Ao passar para o 6º ano, o aluno pode escolher a escola mais próxima de sua residência e, então, terá um intérprete em sala de aula. No contraturno escolar, ele conta com o serviço do Centro de Atendimento Especializado em Surdocegueira ou só em Surdez no Vidal Vanhoni.

O estudante já vem preparado para cá, com sua primeira língua que é libras e com o português. O Vidal Vanhoni é a única escola polo no litoral, unindo as crianças no mesmo ambiente. Todo surdo separado é enfraquecido na sua língua, cultura e identidade. O CAEE não se trata somente de escolarização, mas é também um centro de convivência. Aqui eles se encontram, interagem entre si”, explica Karina.

De Antonina a Paranaguá todos os dias

Jaederson, por exemplo, enfrentou diversos desafios pois só começou a ser alfabetizado aos 14 anos, quando chegou à escola Nydia Moreira Garcêz sem língua nenhuma – ele não sabia libras e nem o português. Sua comunicação era apenas por gestos.

A professora Daniele Ribeiro, que hoje atua também no Vidal Vanhoni, mas já lecionou na Escola de Surdos, fala sobre a superação do jovem. “Ele se superou de um jeito incrível. Quando chegou ao Nydia, não tinha nenhuma comunicação. Lá, ele aprendeu tanto a segunda língua, o português, quanto a primeira língua, libras. E, hoje, é um orgulho vê-lo dando início à graduação e querendo ser um professor”, diz.

Para encontrar a Escola de Surdos, em Paranaguá, Jaederson passou por momentos de muita dificuldade. Ele mora em Antonina, e lá, sua família nunca achou um lugar em que ele se “encaixasse”. “Meu primeiro contato com libras e outros surdos, sem ser minha irmã, foi aqui em Paranaguá. Minha família tinha muita dificuldade em encontrar um lugar para mim em Antonina, na escola onde eu estudava não tinha intérprete e nem comunicação, eu era o único surdo, então sofri muito preconceito. Quando meus pais encontraram a Nydia, me trouxeram para cá, mesmo que continuássemos morando lá. Desde então, são viagens diárias”, conta.

“Eu amo ensinar. Acredito que eu vou me sair bem na faculdade”, diz Jaederson. Foto: Diogo Monteiro/JB Litoral

Ao concluir os anos iniciais do ensino fundamental, ele foi estudar na Escola Estadual Faria Sobrinho, de ensino regular, da 6ª série ao 9º ano. Depois, no ensino médio, optou por fazer o curso de magistério no Instituto de Educação Dr. Caetano Munhoz da Rocha, do 1º ao 4º ano do segundo grau, finalizando em 2021.

Com o fim do ensino fundamental, comecei a ter o sonho de fazer magistério para ser professor. Tinha o desejo de ensinar como professor de libras. Sou uma pessoa mais carinhosa, carismática e comunicativa, então queria ensinar, até porque já tenho facilidade no contato com os colegas ouvintes. Quando me formei, foi uma alegria e orgulho para mim e minha família. A formatura foi em dezembro do ano passado, e minha classe me homenageou com a possibilidade de ser o orador. Foi incrível”, revela Jaederson.

Apoio da família é essencial

O jovem destaca que o apoio de sua família foi fundamental para alcançar os resultados citados. Além de sua irmã Natally Vitória Sechta Martins, que também é surdocega, seus pais, irmã e cunhado aprenderam libras. “Quando a gente chega em casa, nossa família se reúne em volta da mesa e conversa sobre o que aconteceu no dia. Meus pais aprenderam libras, até interpretam para nós no culto e em outros ambientes. É muito importante, porque quem não se comunica fica isolado”, diz. A professora Karina também comenta sobre a importância do apoio familiar para o desenvolvimento intelectual dos surdocegos. “Trazer a luz pessoas como o Jaederson, que conquistou um espaço em que os surdocegos não estavam inseridos, como o ensino superior, traz para elas e suas famílias a informação para se reconhecerem nessa condição e, a partir daí, evoluírem. É notável a diferença que o apoio faz. O resultado de quem recebe e de quem não o recebe é visível. A família que tem consciência de que o filho é surdocego mas tem potencial, investe em sua educação e autonomia. Aqui no CAEE, nosso trabalho não é só atender aos deficientes, mas mostrar às famílias o potencial de seus próprios filhos”, conclui.