Marco Temporal: preservação da Mata Atlântica está em jogo, aponta líder de movimento indígena em Paranaguá


Por Amanda Batista Publicado 18/10/2023 às 17h39 Atualizado 19/02/2024 às 02h36
A cacique Juliana Kerexu, da Aldeia Tekoa Takuaty, na Ilha da Cotinga, é uma das coordenadoras da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e tem se destacado na defesa das terras indígenas. Foto: Apib

As sete comunidades indígenas do Litoral lutam pelo direito de permanecerem em suas terras e pela conservação da maior reserva brasileira da Mata Atlântica, que se vê ameaçada diante da possibilidade de sanção do PL 2.903/2023, que estabelece o Marco Temporal a partir da Constituição de 1988.

Sobre a tese, a cacique Juliana Kerexu, da Aldeia Tekoa Takuaty, da Ilha da Cotinga, em Paranaguá, e uma das coordenadoras da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), afirma ao JB Litoral que a teoria não possui uma base legítima, uma vez que muitos povos foram expulsos de suas terras antes da criação da Constituição e só conseguiram retornar após décadas de mobilização de entidades como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI).

O Marco Temporal trata os povos indígenas como se só existissem a partir da Constituição de 1988, ignorando sua presença ancestral. Isso começou quando o governo entrou com uma ação contra a Funai em Santa Catarina. Os povos indígenas da região de Blumenau, território tradicional dos Xokleng, tiveram que fugir para áreas mais acessíveis após uma invasão que resultou na morte de muitos deles por bugreiros [milicianos contratados para atacar indígenas]”, contextualiza a ativista.

A coordenadora conta que há mais de 10 anos a Apib e outras organizações pressionam parlamentares para que barrem a tese, já que, de forma rotineira, os deputados federais ligados ao agronegócio propõe projetos semelhantes, que limitam o território indígena e afrouxam leis ambientais.

No Congresso, em Brasília, nós já ouvimos de tudo, desde que tem muita terra para indígena até que queremos tomar as capitais. É como se estivéssemos reivindicando todo o território brasileiro”, destaca. “Nós sabemos que hoje, onde estão as capitais, no passado foram territórios tradicionais, mas não temos interesse nenhum nesses locais, o que queremos é preservar nossas aldeias e o que restou da Mata Atlântica”, pontua.

Litoral abriga sete aldeias indígenas, com prevalência do povo Guarani Mbyá. Foto: SEJUF/PR


Indígenas na luta contra o desmatamento ilegal


O Paraná possui a maior área de Mata Atlântica do Brasil, com quase 6 milhões de hectares preservados. As regiões de mata são mantidos pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Atualmente, o Estado administra 72 unidades, que compreendem uma área de 26.250,42 km².

De acordo com Kerexu, apesar da atuação de órgãos de preservação ambiental como o Instituto Água e Terra (IAT), que fiscalizam as regiões, são os indígenas que lidam diretamente com o desmatamento, alertam os órgãos de fiscalização sobre invasores e denunciam queimadas florestais.

Em todo o Brasil, os povos originários são os que veem de perto o contrabando, as queimadas, o garimpo. Nós somos os principais interessados em preservar a natureza, mas se nos expulsarem das nossas terras, não vai demorar até que elas sejam desmatadas e tomadas pelo agronegócio”, defende Juliana.

Expulsão estaria acontecendo mesmo sem aprovação do Marco


Kerexu também explica que, para além do Marco Temporal, o povo indígena já é desrespeitado em seu território legal, como é o caso do povo Laklãnõ Xokleng, que foi ferido com balas de borracha e gás lacrimogêneo por se manifestar contra o fechamento das comportas da Barragem de José Boiteux, no Alto Vale do Itajaí, que causou alagamentos nas aldeias da região.

Nos taxam como invasores, como criminosos, enfrentamos racismo ambiental e todas as violências possíveis, mas seguimos lutando. Só que sem as nossas terras, para onde vamos? O que vai acontecer com os povos que não conseguirem provar que ocupam o território dos seus antepassados? É por isso que somos contra todo o projeto do Marco Temporal, porque é nossa história que está em jogo”, conclui a ativista.

Como se posiciona o agronegócio


Para o representante da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Rudy Maia Ferraz, a defesa do Marco Temporal não significa a extinção dos direitos indígenas, mas a compatibilização de direitos. Segundo ele, o Marco é a única interpretação possível do texto constitucional, pois traria segurança jurídica, balizas e contornos para garantir a implementação das demarcações de terras indígenas ocupadas até a sua promulgação. Trata-se, a seu ver, de um referencial insubstituível para o reconhecimento dos títulos de propriedade.

Quem também corrobora com essa tese é o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Santa Catarina (FAESC), José Zeferino Pedrozo. O dirigente lembra que agricultores de Santa Catarina já perderam processos de demarcação de terras em favor de indígenas, o que gerou revolta em centenas de famílias que, ao final, perderam imóveis legalmente adquiridos. “Não podemos retornar a esses tempos”, destacou.

Em 2019, o povo Guarani Mbyá da Aldeia de Pindoty, na Ilha da Cotinga, foi protagonista do documentário “Ko Yvy Ma Ndopa Mo’ãi – Essa terra não vai terminar”, que trata sobre as mudanças na rotina dos povos a partir da influência de não-indígenas. Foto: Carol Castanho/UFPR.

Marco Temporal


O Marco Temporal prevê que os indígenas só podem reivindicar terras ocupadas por eles antes da Constituição de 1988. O STF derrubou essa tese no dia 20 de setembro por 9 votos a 2. Porém, o Senado aprovou o Projeto de Lei nº 2.903/2023 no dia 27 do último mês.

O texto afirma que para ser considerada terra indígena, o território deve ter sido ocupado pelas aldeias na data de promulgação da Constituição, em 1988, e deveria ser habitado em caráter permanente, além de usados para atividades produtivas e necessárias à preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural do povo. Assim, se a comunidade não ocupava determinado território antes do Marco Temporal, independentemente da causa, a terra não poderia ser reconhecida como tradicionalmente ocupada.

A tese que gerou impasses em todo o território nacional agora aguarda a sanção ou veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Com informações do STF