Maconha: entre a liberdade individual e a preocupação social, Brasil debate sobre o futuro da cannabis


Por Luiza Rampelotti Publicado 11/07/2024 às 18h16

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de descriminalizar o porte de até 40 gramas de maconha para uso pessoal foi um marco histórico no debate sobre drogas no Brasil. A medida, que coloca o país em uma nova fase na discussão sobre a cannabis, dividiu opiniões e gerou um turbilhão de debates sobre os impactos sociais e legais da descriminalização.

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A decisão do STF, que coloca o país em uma nova fase na discussão sobre a cannabis, dividiu opiniões e gerou um turbilhão de debates sobre os impactos sociais e legais da descriminalização. Foto: Agence France-Presse

História da maconha

O ser humano utiliza cannabis há pelo menos 4.700 anos, conforme registros do imperador chinês Shen Neng, que a incluiu em sua farmacopeia para o tratamento de diversas enfermidades. No Brasil, a planta chegou junto com Pedro Álvares Cabral, no século XV, na forma de cânhamo, utilizado como matéria-prima para cordas e velas das embarcações portuguesas.

No entanto, foi a partir de 1550, com a chegada dos primeiros escravizados africanos, principalmente de Angola, que sementes de cannabis começaram a ser trazidas, muitas vezes entrelaçadas em suas vestimentas ou guardadas em bonecas de palha. No solo brasileiro, a planta foi inicialmente utilizada como um alívio ao sofrimento imposto pela escravidão.

Conhecida como “erva de Angola” ou pelo seu nome mais comum, maconha, derivado da palavra africana Makana, que significa “erva sagrada”, a cannabis logo se associou aos costumes religiosos da população negra escravizada. Em 1830, no Rio de Janeiro, surgiu a primeira lei de proibição da cannabis, sendo uma forma de controle social sobre os escravizados, prevendo prisão para usuários e multas para vendedores.

Em 1938, ocorreu a proibição total da maconha em todo o território brasileiro pelo Decreto-Lei nº 891 do Governo Federal. A partir desse momento, iniciou-se um período de perseguição e encarceramento em massa de pessoas que mantivessem qualquer relação com a cannabis, incluindo seu uso medicinal e industrial, além da produção têxtil de cânhamo. Os dados históricos evidenciam o impacto dessa proibição: a vasta maioria dos encarcerados são indivíduos negros e de baixa renda.

Preocupações com o impacto social e da segurança pública

A normativa do STF, que marca um momento histórico na luta por direitos individuais, abre um leque de possibilidades, mas também levanta preocupações. Para entender como a decisão impactou a sociedade e quais as perspectivas para o futuro da cannabis no país, o JB Litoral conversou com moradores de Paranaguá que têm diferentes visões sobre o tema.

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Para o advogado Levi de Andrade, a descriminalização do consumo de até 40 gramas fortalecerá o tráfico de drogas e, ainda, acarretará num possível aumento da violência. Foto: Arquivo pessoal

Eu não concordo com essa decisão, pois compreendo que, infelizmente, o STF usurpou a função legislativa do Congresso Nacional. Entretanto, decisão judicial deve ser cumprida até que ela seja modificada”, afirma Levi de Andrade, advogado criminalista, policial federal aposentado e 2º tenente R2 do Exército Brasileiro, na reserva.

Levi tem suas preocupações com o futuro da cannabis no país. “Acredito ser prejudicial à saúde do consumidor e à sociedade devido às alterações que o usuário tem no comportamento e, ainda, os atos criminosos, costumeiramente cometidos por eles, principalmente roubos e furtos para terem recursos a fim de poderem adquirir a droga“, completa.

Para ele, a descriminalização do consumo de até 40 gramas fortalecerá o tráfico de drogas e, ainda, acarretará num possível aumento da violência. “O consumo foi descriminalizado, mas onde os consumidores irão comprar? Certamente dos traficantes, o que continua sendo crime segundo o artigo 33 da Lei 11.343/2006. Isso pode aumentar o número de traficantes, um comércio ilegal lucrativo que já está associado a aumento de violência, disputas territoriais, roubos e outros crimes, incluindo estupros devido aos efeitos da droga“, avalia.

Cannabis: um debate necessário

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Para o advogado criminalista e artista Giovanni Negromonte, a decisão do STF representa um passo fundamental para o futuro da cannabis no Brasil. Foto: Arquivo pessoal

Já para o advogado criminalista e artista Giovanni Negromonte, a decisão do STF representa um passo fundamental para o futuro da cannabis no Brasil. “Se tem uma coisa que não se pode negar é que: o futuro é canábico“, defende.

Historicamente a maconha vem contrariando todo um processo de demonização e desinformação, demonstrando todo seu potencial tanto como produto e, principalmente, como medicamento. Os benefícios, por exemplo, aqueles comprovados pelo uso da maconha medicinal, podem ser vistos nos tratamentos de diversos sintomas de doenças e transtornos de saúde. Não à toa, nos últimos anos, a própria ANVISA já vem regulamentando e autorizando o uso de medicamentos à base de maconha“, destaca Giovane.

Ele ainda critica a forma como a questão é tratada no país. “A discussão sobre a maconha envolve um amplo debate sobre questões sociais. Isso porque, atualmente, a questão é tratada a partir da perspectiva de segurança pública quando, na verdade, deveria ser considerada sob uma perspectiva da saúde pública“.

A polêmica da quantidade e a necessidade de regulamentação

O limite de 40 gramas de maconha para uso pessoal gerou controvérsias, uma vez que continua sendo a autoridade policial quem vai determinar se a pessoa é usuária ou traficante. “O problema disso é que, em razão do racismo estrutural que baliza nossa sociedade, boa parte das prisões e do panorama de superencarceramento no Brasil recai sobre jovens, negros e periféricos. É o uso da política proibicionista para fazer uma criminalização da pobreza“, analisa Giovane.

Para Cezar Wolanski, artista conhecido como Shelps, a decisão do STF é positiva, mas ainda insuficiente. “Na verdade, a decisão apenas reafirmou a Lei de Drogas de 2006 que propõe a diferenciação entre usuários e traficantes. A novidade foi a quantidade proposta para definir um critério. Já que a lei era vaga nesse ponto. Portanto, vejo como um avanço“, afirma.

Acredito ser positivo no sentido de reduzir o encarceramento desnecessário de usuários, mas negativo pelo fato de não regulamentar a produção e venda, deixando a cargo do narcotráfico o monopólio desse mercado“, ressalta Shelps.

A busca por uma nova abordagem e a importância da educação

A descriminalização levanta questões sobre a necessidade de uma nova abordagem para lidar com as drogas no Brasil. “Espero que com essa decisão as forças de segurança possam redirecionar seu trabalho aos crimes de maior dano à sociedade. Inclusive na identificação dos indivíduos que realmente lucram com o mercado ilegal, que hoje estão encastelados, bem longe das abordagens policiais nas esquinas periféricas“, defende Shelps.

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Já Cezar Wolanski, artista conhecido como Shelps, avalia que a decisão do STF é positiva, mas ainda insuficiente. Foto: Arquivo pessoal

Ele também defende a importância da educação sobre as drogas. “Já existem evidências científicas suficientes para afirmar que a maconha causa menor dano e menor dependência ao usuário comparado com álcool e tabaco. A proibição tem raízes culturais e não científicas”, afirma.

Para o artista, a melhor forma de melhorar a educação sobre as drogas é dar mais voz ao campo científico em contrapartida aos preconceitos históricos “que não se mostraram eficazes nas décadas de proibição. Na guerra contra as drogas, as drogas venceram de goleada. Agora está na hora de usar a inteligência”, finaliza Shelps.

A visão daqueles que lutam contra a dependência química

O pastor Vanderlei Nunes de Macedo, fundador da Casa de Recuperação Desafio Jovem Betel, em Paranaguá, dedica sua vida a resgatar e restaurar vidas devastadas pelas drogas. Com 20 anos de experiência, ele se posiciona firmemente contra a decisão do STF de descriminalizar a maconha, defendendo a importância da prevenção e do combate à dependência química.

Trabalhando na área de segurança no porto, presenciei de perto como as drogas influenciam pequenos furtos e levam as pessoas a uma vida degradante, antissocial. A Casa Desafio Jovem Betel, que hoje atende a 36 pessoas, nasceu para oferecer uma alternativa e contribuir para que Paranaguá seja um lugar melhor para se viver”, diz Vanderlei.

Ele acredita que a descriminalização da maconha terá consequências negativas, intensificando o consumo e a dependência. “Se existe uma porta de entrada para as drogas mais pesadas, a maconha é uma delas. E a maioria das pessoas que passam por aqui entraram na droga por curiosidade, por influência de amigos, mas, muitas delas, por causa da maconha”, diz.

O pastor também avalia que a descriminalização abriu um grande precedente para o Brasil liberar a venda da maconha, o que, segundo ele, seria “catastrófico”. “Sou totalmente contra as drogas, e luto contra elas há 20 anos. A mensagem que o Desafio Jovem Betel tenta transmitir é que a felicidade não depende de drogas. Não precisa beber, não precisa se entregar a essa vida deteriorante. A droga destrói famílias, deteriora o ser humano, leva à perda de valores e ideais. Drogas matam!”, alerta.

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