“Achava que ia morrer”, diz condenado do caso Evandro inocentado em revisão criminal


Por Amanda Batista Publicado 30/11/2023 às 10h51 Atualizado 19/02/2024 às 06h03

Durante pouco mais de 30 anos, Osvaldo Marcineiro foi condenado, torturado e privado de liberdade por um crime que não cometeu. O pai de santo foi um dos sete acusados de assassinar Evandro Caetano Ramos, de seis anos, que desapareceu em abril de 1992, em Guaratuba.

As investigações da época apontaram que Beatriz Abagge e a mãe, Celina Abagge, primeira-dama de Guaratuba, teriam encomendado a morte do menino em um ritual, o que tornou o caso conhecido como “As bruxas de Guaratuba”. Outras cinco pessoas, entre elas, Osvaldo, foram incriminadas. Ele e Davi dos Santos Soares foram condenados por sequestrar e matar o garoto.

Oito anos após cumprir inteiramente sua sentença, na quinta-feira (9) deste mês de novembro, três dos cinco desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) votaram pela revisão criminal do caso por entenderem que os acusados foram torturados para fazerem uma falsa confissão. Eles chegaram à conclusão após fitas de áudio com os indícios de tortura se tornarem públicas no podcast Projeto Humanos, do jornalista Ivan Mizanzuk.

Em entrevista exclusiva ao JB Litoral, Osvaldo falou sobre as motivações por trás da acusação, relembrou os momentos de tortura e de solidão na cadeia e destacou sua luta contra a condenação de inocentes.

A vida antes do caso


Antes de tudo acontecer, ele conta que era uma pessoa feliz e sonhadora. Sempre esperava o melhor das pessoas e possuía uma forte ligação com Deus. A participação ativa nas atividades de religiões de matriz africana rendeu-lhe o cargo de vice-presidente da Federação de Cultos Afro-Brasileiros. Além do título, também possuía uma loja de artigos religiosos e participava de exposições dos produtos em feiras regionais.

Foi por conta de uma dessas feiras que visitou Guaratuba, ao lado da esposa na época, Andreia Pereira. “Diziam que era uma cidade mística e, quando eu vi aquela praia, vislumbrei a chance de unir o pessoal em uma festa de Iemanjá, além de construir uma imagem dela e um espaço para as religiões de matriz africana fazerem homenagens, mas isso nunca chegou a acontecer”, lembra.

Ao se encantar com a cidade, ele resolveu pedir uma autorização na Prefeitura para montar uma barraca de jogo de búzios, foi onde conheceu Beatriz Abagge, filha do então prefeito Aldo Abagge, que mais tarde se tornaria amiga da sua esposa Andreia e, assim como ele, seria condenada pelo assassinato de Evandro.

Pressão política


Com o passar do tempo em Guaratuba, a sala de búzios de Osvaldo ganhou notoriedade. A cada dia que passava, atraia mais e mais pessoas. Assim como a fama crescia, aumentava também a amizade com a família Abagge e a indisposição com os adversários políticos dela.

Começamos a receber muita gente, era quase a cidade inteira, e sempre dava problema com um ou outro por conta da nossa proximidade com o prefeito. Acredito que foi por isso que acabaram nos envolvendo no caso, acho que foi uma pressão de cunho político e uma grande intolerância religiosa, foi assim que me tornei um dos alvos”, alega.

Sem direito à defesa


Na época das investigações, Osvaldo conta que os policiais chegaram para conversar com ele em seu portão e, em meio a breve conversa, sem apresentar mandado de prisão ou qualquer prova da legalidade da ação, agarraram-lhe pelo pescoço, colocaram um capuz e o jogaram no carro.

Daquele momento em diante, a vida dele nunca mais foi a mesma. “Eles me levaram para uma chácara onde fui torturado, foram choques, afogamentos, tapas, pancadas, enrolavam uma borracha ou um pano na mão e me batiam com aquilo. Na época, não sabia, mas hoje acredito que tenha sido para não deixar tantas marcas”, relembra.

Osvaldo não foi o único acusado torturado no local, os demais envolvidos passaram pelo mesmo tipo de tratamento. “Tiraram nossas roupas e colocaram nossas cabeças em uma água podre; com as mãos algemadas para trás, eles perguntavam coisas que a gente não fazia ideia. Para falar algo tínhamos que bater palma enquanto se afogava. Nas fitas dá para perceber como era”, detalha.

Apesar de nunca ter visto Evandro, enquanto era torturado e tentava salvar a própria vida, por 11 vezes ele admitiu ter matado o menino sozinho. Porém, no fundo das fitas, é possível ouvir uma voz que diz, por 14 vezes, “não foi você, não foi você, você não conhecia o menino”.

Foram as torturas que nos levaram a falar, na hora achava que ia morrer. Na verdade, tinha certeza. Eles diziam ‘se estão fazendo isso com as mulheres, imagina com você’ e aquilo me aterrorizava”, afirma. “Eles não buscaram a verdade, queriam montar uma história e, nela, apareceria cada um dos acusados até formar a trama”, justifica.

Denúncia de tortura


Segundo Osvaldo, desde o princípio, tanto ele quanto os demais incriminados contavam que estavam sendo torturados, mas, por conta de pressão popular e política, nunca eram ouvidos ou recebiam orientações legais do advogado do Estado. Somente dois anos depois que já estava preso, o advogado Antonio Figueiredo Basto, que assumiu o caso, levou as alegações em consideração.

Tentamos falar sobre isso desde os primeiros dias, sempre tentamos, mas ninguém queria ouvir. Teve até repórteres que entraram em contato, mas colocaram a matéria como eles queriam. O que podíamos fazer, fizemos, mas eram todos contra nós”, justifica.

Período na prisão


Por 10 anos ele esteve preso em regime fechado, sendo um ano e oito meses na segurança máxima da Penitenciária Central do Estado, além de outros mais de dois anos em prisão domiciliar, até abril de 2015. Segundo ele, na prisão, os guardas eram orientados a bater nele e deixá-lo com fome, além de inúmeras vezes deixá-lo preso na solitária.

Para Osvaldo, o motivo era claro: primeiro, não queriam que vissem o estado físico em que se encontrava, pois, naquele momento, quase não parecia humano. Segundo, porque ele tinha o apoio dos presidiários, que viam o tratamento injusto e chegavam até a prometer fazer uma rebelião.

Apesar da barbárie, um dos episódios que o marcou profundamente foi a virada do ano de 1995. Enquanto o pai de Osvaldo agonizava na cama segurando a mão da filha, Ana Marcineiro, pedindo para que ela não abandonasse o irmão, a família mandou um conhecido avisar a penitenciária para que o filho pudesse se despedir, mas não permitiram. Na época, “disseram que o cara lá de cima não deixou”.

Foram quase 11 anos em regime fechado, fora a prisão domiciliar e a condicional até 2015. A gente não tinha direito a nada, sempre foi assim. Me tiraram tudo, meus sonhos, minha liberdade, meu trabalho, tiraram tudo que puderam, só não destruíram a minha família e a minha fé. Foram quase 31 anos com nome de bruxo na testa”, diz indignado.

Retorno à vida


Ao retornar à sociedade, receber uma carta de perdão do Estado do Paraná e ser absolvido das acusações que lhe roubaram mais de três décadas de vida, Osvaldo se tornou ativo nas redes sociais, como @osvaldo_marcineiro no Instagram, @O_Marcineiro no Twitter e @Osvaldo.Marcineiro no Facebook e agora segue com a missão de encontrar os verdadeiros culpados pelo desaparecimento do menino Evandro e lutar contra as injustiças do sistema penal.

A justiça foi feita, apareceu a verdade, mas nossa luta continua. Não tem como voltar lá atrás e tentar consertar, mas tem como lutar para não acontecer com outros o que aconteceu com a gente”, destaca.

Embora o alicerce seja a justiça para o caso Evandro, nós juramos na prisão que, quando saíssemos, não iríamos lutar apenas contra erros judiciários, mas contra todas as injustiças, seja a discriminação, o preconceito, a intolerância e a xenofobia. Agora não nos calam mais”, conclui.

Por Amanda Batista com entrevista de Luiza Rampelotti