“Em 25 anos de carreira, nunca vi algo tão cruel”, diz delegado de Antonina sobre suspeita de tortura contra criança de 4 anos


Por Luiza Rampelotti Publicado 12/09/2023 às 16h08 Atualizado 18/02/2024 às 23h11

No último sábado (9), um caso chocante de suspeita de tortura veio à tona em Antonina, quando um casal foi preso sob a acusação de agredir brutalmente a própria sobrinha, uma criança de apenas quatro anos. A menina havia perdido a mãe há cerca de um ano e estava sob os cuidados dos tios.

A suspeita de tortura foi inicialmente levantada pelo médico que atendeu a criança no início do mês, no Pronto Socorro do município. A pequena chegou à unidade de atendimento com vários hematomas em seu rosto, joelhos e braços, indicando sinais de agressão física.

O médico imediatamente acionou o Conselho Tutelar e a Polícia Militar. A menina foi transferida para o Hospital Regional do Litoral (HRL), em Paranaguá, devido à gravidade de seu estado.

O delegado responsável pelas investigações, Isaías Fernandes Machado, relatou a gravidade das lesões, descrevendo “múltiplas lesões em todas as partes do corpo, na cabeça um hematoma muito grande, sinal de um espancamento recente. Existiam sinais de, segundo o médico, como se tivessem apagado cigarro próximo a um dos mamilos da criança. Os joelhos apresentam lesões muito graves, que atingiram a região óssea de forma muito simétrica, que, segundo o médico, evidenciam pancadas por meio de paus, ripas ou sarrafos“.

Tutores alegaram queda

Inicialmente, os tios alegaram que a menina havia sofrido uma queda no banheiro, porém, os exames médicos demonstraram que os ferimentos eram antigos, levantando suspeitas sobre a veracidade dessa versão. Contudo, o laudo do Instituto Médico Legal (IML) confirmou os exames realizados pelo médico, evidenciando ofensas à integridade corporal da menina com instrumentos contundentes e ações cruéis, resultando em ferimentos em várias partes do corpo.

Tudo indica que foi uma agressão muito forte, muito intensa, porque a cabeça da menina ficou muito inchada. O lóbulo de uma das orelhas ficou todo lesionado. Então não pode ser só um tombo”, diz o delegado Isaías ao JB Litoral.

O Ministério Público do Paraná solicitou a prisão dos tios, alegando que o crime foi cometido com acentuada gravidade e violência excessiva contra a criança. A Justiça acatou o pedido e determinou a prisão temporária do casal, inicialmente por 30 dias, com a possibilidade de prorrogação.

Menina também estava desnutrida; ela ainda foi diagnosticada com deficiência

Após quatro dias internada no Hospital Regional do Litoral, a menina recebeu alta médica. Em entrevista exclusiva ao JB Litoral, o delegado Isaías Fernandes Machado esclarece que o caso continua em investigação e que a menina está atualmente sob os cuidados da Vara da Infância e Juventude, abrigada na Casa de Passagem, uma instituição que acolhe crianças desamparadas.

O delegado também destaca que a investigação continua a apurar os detalhes dos ferimentos, mas que os indícios apontam para um possível crime de tortura. Além disso, ele menciona que a criança apresenta um quadro de desnutrição grave.

A menina está sendo acompanhada por um psicólogo e foi diagnosticada com deficiência, uma vez que possui dificuldade na fala, o que, segundo o delegado, pode ser um dos motivos para as agressões. “Um ano vivendo com os tios e ela nunca havia recebido nenhum diagnóstico de que possui alguma deficiência; isso só foi percebido depois que os fatos aconteceram. Ela tem dificuldade de verbalizar as coisas e essa pode ser uma das razões pelas quais ela era agredida”, diz ao JB Litoral.

Casal pode ter interferido no depoimento dos filhos biológicos

Os tios da menina têm quatro filhos biológicos e estavam em processo de adoção da sobrinha, que não havia sido concluído. A idade das crianças varia entre nove meses, oito e nove anos.

O casal não possui nenhum tipo de renda e, de acordo com Isaías, vivem com o valor recebido através do Bolsa Família dos filhos biológicos. No entanto, o delegado revela que, durante a oitiva, eles reclamaram que o pai da sobrinha estaria recebendo o benefício da menina. “Isso também pode ser um fato que provocava a ira deles”, comenta. O pai biológico da vítima está ausente desde que os fatos aconteceram.

O delegado afirma que os filhos biológicos dos acusados não tinham marcas aparentes de agressão e, inclusive, estavam bem nutridos. Ele ainda informa que, enquanto o casal estava solto, tudo indica que estavam interferindo no que os filhos tinham a dizer sobre o caso.

Agora, as crianças estão sob os cuidados dos avós e serão ouvidas, em data a ser marcada pelo Poder Judiciário, através do procedimento chamado depoimento especial, que se trata da oitiva da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária. Esse procedimento garante uma escuta especializada em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam sua privacidade.

A partir do depoimento das crianças – uma das provas imprescindíveis para a investigação do caso, conforme o delegado Isaías –, os acusados serão novamente interrogados.

Omissão também é crime

Ele ainda destaca que não há certeza sobre quem, possivelmente, praticou as violências contra a criança. “Ainda não sabemos se foi o tutor que praticou de forma ativa, ou a tutora, ou se ambos praticaram”, diz.

Contudo, caso apenas um tenha agredido a menina de forma ativa, e o outro tenha se omitido, o omisso também responde como se tivesse cometido a agressão. “O Código Penal Brasileiro determina que quem está na função de garantidor dos direitos da criança e do adolescente, seja no papel de guardião, tutor, ou pai e mãe biológico, que se omite diante de uma agressão, esse ato de omissão se equivale à agressão ou tortura” explica.

CREAS deveria acompanhar a menina

Questionado sobre denúncias antigas acerca de maus tratos à criança, Isaías afirmou que não foram recebidas. No entanto, vale destacar que a menina já morava há cerca de um ano com os tios e que havia marcas antigas de lesões em seu corpo.

Ele ainda explicou que toda criança que está em processo de adoção deve ser acompanhada pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e receber visitas presenciais, ao menos, uma vez no mês. Porém, aparentemente, esse acompanhamento não era realizado.

Não posso falar pelo CREAS, mas essa menina faz muito mais de um mês que está subnutrida e que, provavelmente, tem marcas de agressão. Essa questão também será investigada”, afirmou.

O JB Litoral entrou em contato com a Prefeitura de Antonina e questionou acerca do acompanhamento à criança em processo de adoção. No entanto, até a conclusão desta reportagem, não houve retorno.

“Nunca vi algo do tipo”, diz delegado

Isaías Fernandes Machado é delegado em Antonina desde janeiro deste ano. Com 25 anos de atuação no Sistema de Segurança Pública, ele conta que nunca viu algo tão cruel durante sua carreira.

Nunca tinha visto algo do tipo, tamanha crueldade contra uma criança. Tenho muita dificuldade de visualizar as imagens até hoje”, desabafa.

Em abril deste ano, o delegado também foi presidente do Inquérito Policial do caso Kameron, da menina de 11 anos que foi estuprada e morta pelo padrasto em Guaraqueçaba. “É o segundo caso de muita repercussão envolvendo crueldade contra a criança em que eu atuo nesse curto período que estou em Antonina”, conclui.