Reabertura da Praça de Alimentação vira lenda, na Ilha do Mel


Por Brisa Teixeira Publicado 13/07/2021 às 18h17 Atualizado 16/02/2024 às 07h33

Fechada há mais de três anos, a reabertura da Praça de Alimentação, na comunidade de Encantadas, Ilha do Mel, depende de um entendimento entre a Associação dos Nativos da Ilha do Mel e Comunidades Tradicionais da Bacia de Paranaguá (Anime) e o Poder Público. De um lado, a Associação reivindica a renovação da concessão do espaço com a condição de que seja reocupado exatamente como foi em mais de 20 anos de existência, ou seja, com oito boxes administrados pelas oito famílias. Do outro, está o Instituto Água e Terra (IAT), antigo Instituto Ambiental do Paraná (IAP), o Ministério Público do Paraná (MPPR), entre outros órgãos governamentais, que pretendem colocar em prática um projeto que não contempla as oito famílias e que teve como base um estudo de um conjunto de negócios realizado em parceria com o Sebrae para identificar as oportunidades e alavancar o turismo no local. 

A obra era para ter iniciado em março deste ano, no entanto, a comunidade de Encantadas reclama que, como de costume, não foi consultada. “Este projeto poderia ter sido feito em conjunto com a nossa comunidade, mas não, foi feito por pessoas de fora da Ilha do Mel. Nunca somos devidamente consultados sobre os projetos que afetam diretamente nosso território” diz Aguinaldo da Silva dos Santos, presidente da Anime. Ele informa, ainda, que é válido lembrar que as instalações foram construídas com o propósito de realocar os proprietários de comércio na beira daquela praia.

Faixa alerta sobre a estrutura fragilizada da Praça

Enquanto os nativos de Encantadas, representados pela Anime, se queixam da falta de comunicação, que poderia ter ocorrido antes da elaboração do projeto, Rafael Andreguetto, diretor de Políticas Ambientais da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Sustentável e do Turismo (Sedest) e diretor de Patrimônio Natural do IAT, diz que em nenhum momento foi possível ainda explicar o projeto para a comunidade da Ilha do Mel e nem debater as possiblidades de ajustes; reforça ele, “se forem entendidos necessidade de ajustes”. Explica ainda que, como se trata de uma licitação pública para locação dos espaços, por lei não existe direito garantido.

Direitos Humanos X Licitação Pública

O presidente da Anime lamenta que, mesmo depois que o governo reconheceu os direitos da comunidade nativa, nada mudou na Ilha. “Pelo contrário, muitas leis e projetos do governo e de empresas estão se instalando sem nenhum tipo de consulta ao nosso povo”. Uma das decisões governamentais, que mais impactaram economicamente e psicologicamente a comunidade de Encantadas, foi o fechamento da Praça de Alimentação. Em sua opinião, a referida área era fundamental para a economia nativa, por ser a casa de manifestações culturais da região e o lugar onde os moradores vendiam o fruto de sua pesca. Em 2018, após o feriado de Páscoa, o local foi fechado por demanda do IAP e, hoje, o líder comunitário denuncia a intenção de entregá-la a empresas de fora.

Considerando que o direito à consulta prévia, livre e informada está previsto na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pertence ao bloco de direitos humanos que deve ser observado pelo Estado, a Associação de Nativos fez um Protocolo de Consulta. “Nós queremos fortalecer as nossas escolhas e decisões hoje e amanhã. Queremos que nossos avós e nossos filhos tenham seus direitos de nativo garantidos”. Santos entende que é preciso discutir com os nativos e pescadores artesanais da região de Encantadas da Ilha do Mel, não somente o projeto e a obra em si, mas principalmente a futura destinação desses espaços da Praça de Alimentação.

De acordo com o IAT, em junho de 2020, foi apresentado o projeto em audiência pública realizada pela Assembleia Legislativa do Estado do Paraná. Desde então, foram feitas inúmeras reuniões não oficiais e a solicitação de forma oficial, desde dezembro de 2020, para a comunidade autodeclarada, em cumprimento e respeito à convenção da OIT 169, sem sucesso. Em 24 de maio de 2021, a equipe do IAT esteve presente em reunião convocada e organizada pela comunidade, onde não foi permitida a apresentação do projeto e explicações.

Sabendo da vontade da comunidade em reabrir a praça como era antigamente, Andreguetto afirma que isso não será possível. “Temos que pensar que a legislação, hoje, determina que você tem que fazer uma chamada pública para a ocupação desses espaços da mesma forma que foi feito com o Mercado Municipal de Paranaguá, o Mercado do Café e com a Rodoviária de Curitiba. São equipamentos públicos que necessitam de chamada pública”.

Com tudo começou

Em maio de 1998, a comunidade da Ilha do Mel estava em festa. Nativos e autoridades comemoravam a inauguração da Praça de Alimentação, na Praia do Mar de Fora das Encantadas, graças a um esforço da Associação de Moradores e a vontade política do Poder Público, que precisava encontrar uma solução para realocar de maneira organizada e regulamentada os nativos que vendiam comidas em barraquinhas, à beira mar. Sendo assim, um consenso entre as famílias mais tradicionais, elas foram distribuídas em oito boxes com a liberdade de escolher o que poderiam vender.

A praça foi um marco também para o turismo da região, uma vez que havia ali uma grande circulação de turistas vindos de todo o lugar do Brasil e do mundo degustar desde porções até pratos bem elaborados de uma culinária tipicamente ribeirinha. E se não bastasse comer bem e trabalhar com vista para o mar, a Praça também se tornou lugar tradicional para a realização das festas mais típicas da região, como a Festa da Tainha e a do Fandango, sem contar o tradicional forró. 

Começo do pesadelo

Tudo parecia ir muito bem até que, em abril de 2018, uma ordem do MPPR interditou a Praça, sem data definida para a reabertura. A alegação do órgão foi que houve sublocação de metade dos estabelecimentos.

Entre outras justificativas, a 2ª Promotoria de Justiça de Paranaguá, em nota, declarou que a Praça de Alimentação está, hoje, inserida no perímetro do Parque Estadual Ilha do Mel e demanda atividades com ele compatíveis.

Além disso, o IAT reforçou o fechamento da Praça, após repetidas fiscalizações e autuações pelo não atendimento de algumas famílias às normas de vigilância sanitária, ausência de alvará de funcionamento, realização de bailes em área de Unidade de Conservação (UC) e perturbação do sossego.

As famílias responsáveis pelos boxes discordam dos motivos que levaram ao fechamento, acreditando que logo seria possível a reabertura. “Ninguém imaginava, na época, que essa interdição perduraria por anos, levando muitas famílias a uma tristeza que desencadeou em depressão e doenças crônicas em alguns nativos”, explica o presidente da Anime, que também faz parte de uma das famílias dos oito boxes.

O que foi um sonho concretizado por mais de 20 anos, a Praça de Alimentação, com seu fechamento, transformou-se em um pesadelo judicial e que, segundo Santos, os réus são membros de uma comunidade nativa tradicional, com costumes e cultura diferenciados, dependendo da renda proveniente de seus estabelecimentos comerciais.

Projeto de Reabertura

O projeto de reabertura, segundo Andreguetto, hoje, prevê dois restaurantes e três lojas, que seriam de conveniência.

“Teríamos, na Praça de Alimentação, cinco espaços comerciais, mas também faríamos a reforma de uma outra praça ao ar livre, em local mais central, instalando mais seis quiosques”. Com isso, ele diz que o número de ofertas dos espaços, passaria dos oito para 11, sendo cinco na Praça de Alimentação, com dois restaurantes, e mais três, que poderiam ser café e sorveteria. “Pensamos em um outro formato justamente para que se tenha uma área completa de serviços de alimentação para o turista. Essa é a proposta que vem sendo trabalhada hoje”.

O Diretor admite ainda a possibilidade de subdividir os dois restaurantes para quatro boxes, bastando adequar a questão de uma análise técnica e reforça que das quatro famílias que não fizeram a sublocação ilegal, o IAT está verificando junto à justiça a possibilidade de garantir esse direito a eles, porém, destaca que a definição será da justiça, não do órgão ambiental.

Famílias sem praça

As famílias que perderam o seu espaço na Praça de Alimentação tiveram impacto não apenas no bolso, mas principalmente no campo emocional, conforme relatos de Rosana Agostinho, Maria Tavares Costa Serafim, Madalena da Costa Serafim e Acacilda Irineu Fonseca. A reportagem do JB Litoral esteve na casa dessas pessoas e conferiu de perto a tristeza dos familiares. 

Rosana em sua casa revela, pelo olhar, a tristeza e a depressão com o fechamento da Praça

A família de Rosana Agostinho, quando foi comunicada do fechamento devido a irregularidades, custou a acreditar.

“Estava com tudo em dia e tinha uma contadora para ajudar e assegurar que estava fazendo tudo certo. Quando, lá no início, nossa barraca era na praia, tínhamos mais liberdade, quando fomos para a Praça tivemos que nos adequar e assim fizemos”, diz Rosana. De maneira entristecida e com os olhos marejados, ela aguarda até hoje uma justificativa e um retorno do Ministério Público. Nesses mais de três anos de Praça fechada, ela conta que o seu marido, volta e meia vai até lá e fica andando desolado de um lado para o outro. Já ela, não teve coragem de passar perto. “Estou em depressão, a Praça era a alegria e o sustento da minha família”, desabafa.

Inconformada também está Maria Tavares Costa Serafim. “Abrimos empresa, nossos funcionários, todos da família, tinham carteira assinada e plano de saúde. Tínhamos nossos direitos e cumprimos sempre com nossos deveres”. No entanto, lembra ela, após o feriado de Páscoa de 2018, todos foram obrigados a sair de lá. “Nós sabíamos que, da nossa parte, as irregularidades que alegaram não cabiam a nossa família. Não foram 20 dias, foram 20 anos fazendo tudo o que eles pediam e sempre promovendo e incentivando a cultura local”. Seu marido, Mauro Braga Serafim, o Maurinho, não conseguiu conter as lágrimas. “É uma dor muito forte perder tudo, era a nossa rotina, a nossa vida. É uma tristeza enorme passar hoje por ali”, diz Maurinho lembrando, que acompanhou dia a dia a construção da Praça.

A irmã de Maria, Madalena da Costa Serafim, desde o fechamento da Praça, escuta a promessa de que um dia ela vai reabrir. “Ficamos sem trabalho de um dia para o outro. O pouco de dinheiro que tínhamos, foi para pagar o advogado. Tinha fé que logo estaríamos lá de volta”. Nesses mais três anos esperando, ela conta que, às vezes, vai até a Praça e sai de lá chorando. “É uma tristeza só, até hoje estou sem trabalho. Entrei em depressão e tomo remédio. Estamos esquecidos e ninguém faz nada pela gente”.

Madalena em frente ao box em que sua família trabalhou por 20 anos

Vizinha de box de Madalena, Cacá Fonseca ficou conhecida pelos seus pratos típicos muito apreciados pelos turistas que vinham do Brasil e exterior. “Tudo acontecia naquela Praça, era um centro de eventos para divulgar a nossa cultura com as festas típicas e nossa gastronomia, sem contar o famoso forró”, diz em tom nostálgico e com lágrimas de tristeza. “Sempre fiz tudo certinho, nunca arrendei e não estou na lista dos que ainda têm chance de continuar na Praça. Depois de 23 anos, eles vêm falar que estávamos fazendo mau uso? Para mim, é tudo uma desculpa para privatizar, por isso estão dificultando a comunicação com a gente”, lamenta Cacá.

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