Projeto Mãos Amigas, em Guaratuba, traz uma nova perspectiva na reintegração de detentos à sociedade


Por Luiza Rampelotti Publicado 04/04/2024 às 11h24

Iniciativa é realizada pelo DEPEN, por meio da Cadeia Pública de Guaratuba que, atualmente, abriga 85 presos. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral
Iniciativa é realizada pelo DEPEN, por meio da Cadeia Pública de Guaratuba que, atualmente, abriga 85 presos. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral

Em Guaratuba, uma iniciativa conduzida pelo Departamento de Polícia Penal do Estado (DEPEN), em parceria com a Prefeitura, está proporcionando uma nova perspectiva para aqueles que, em algum momento de suas vidas, cometeram um crime e se viram privados de liberdade. O Projeto Mãos Amigas está demonstrando que a ressocialização dos detentos é viável e que muitos deles experimentam verdadeiras transformações durante o período de reclusão.

Em vigor há dois anos, o projeto mantém uma equipe de manutenção permanente, composta por presos da Cadeia Pública de Guaratuba, trabalhando em unidades de saúde, hospitais e outros espaços públicos. Até o momento, 24 imóveis da área da saúde foram reformados, sendo que 14 deles passaram por uma revitalização completa. Além disso, os detentos estão envolvidos na recuperação de materiais, como macas, equipamentos cirúrgicos e móveis internos.

A contratação de mão de obra de pessoas privadas de liberdade (PPLs) está prevista na Lei de Execução Penal, a qual estabelece critérios de seleção e classificação. Tanto instituições públicas quanto empresas privadas podem aderir à proposta mediante convênio celebrado entre as partes. O convênio prevê o pagamento de um salário-mínimo ao apenado pelo contratante, sendo que até 80% desse valor pode ser destinado à família. Parte do montante é depositada em uma poupança prisional, podendo ser sacada pelo egresso após o cumprimento da pena.


Cadeia Pública de Guaratuba


Na semana passada, o JB Litoral visitou a cidade para conhecer mais detalhes do projeto. Na Cadeia Pública, a equipe foi recebida por Alicardo Rochester Bianco, gestor da instituição e policial penal há 15 anos. Ao adentrar o recinto, é possível perceber que os estigmas associados às prisões não se aplicam à de Guaratuba. O edifício é claro, bem-iluminado e limpo, com detentos responsáveis pela manutenção do espaço, e que até certo ponto pode ser considerado acolhedor. A visão estereotipada de prisões sujas, malcheirosas e assustadoras é contrastada pela realidade observada ali.

Assim como a maioria das prisões no Brasil, a de Guaratuba também enfrenta o problema da superlotação. Projetada para abrigar 66 detentos, atualmente conta com aproximadamente 85, cerca de nove por cela. Lá, aqueles que demonstram aptidão e perfil para o trabalho podem realizar atividades dentro da própria cadeia visando à remissão da pena, recebendo um salário que pode ser destinado à família ou guardado. Além disso, eles têm a oportunidade de participar do Projeto Mãos Amigas.

O Mãos Amigas atende até 12 presos e, atualmente, temos seis trabalhando, conforme a demanda da Prefeitura. Este projeto propõe à inserção gradual na sociedade, buscando a remissão da pena, de um dia para cada três dias trabalhados, proporcionando ao detento a possibilidade de transferir parte do salário para sua família, o que lhe traz tranquilidade para cumprir sua pena, deixando a família assistida“, explica Bianco.

Alicardo Rochester Bianco, gestor da instituição e policial penal há 15 anos, recebeu a equipe do JB Litoral para falar sobre o projeto. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral
Alicardo Rochester Bianco, gestor da instituição e policial penal há 15 anos, recebeu a equipe do JB Litoral para falar sobre o projeto. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral

Avaliação rigorosa para participação


No entanto, nem todos os presos podem participar do programa. Apenas aqueles aprovados por uma comissão de avaliação do DEPEN têm permissão para integrá-lo e trabalhar fora da prisão.

Crimes hediondos, como estupro e estupro de vulnerável, são excluídos dessa possibilidade. Os que preenchem os primeiros requisitos passam por uma triagem que dura, em média, 20 dias. Verificamos seu perfil, o tipo de crime, sua situação antes e depois do delito, sua família, local de residência, realizando uma investigação social para determinar sua elegibilidade para o projeto“, informa Bianco.

Ele destaca que os detentos que participam do programa são aqueles genuinamente empenhados em se reintegrar à sociedade. “A primeira etapa deste projeto é a vontade de mudança, o interesse na ressocialização“, diz ele.

Segundo o gestor, é notável a evolução dos apenados durante sua participação no Mãos Amigas. “Eles passam o dia trabalhando na rua, interagem com pessoas diferentes, trazendo novos assuntos para dentro da unidade. Podemos observar, nas conversas com seus familiares e nas visitas virtuais que ocorrem quinzenalmente, a alegria do detento e de sua família por participar deste projeto“, comenta.


Resultados aprovados


Para entender melhor a dinâmica do projeto, o JB Litoral visitou a Unidade Básica de Saúde da comunidade rural do Descoberto, onde quatro detentos estavam concluindo a revitalização completa do prédio. O coordenador de manutenção da Secretaria Municipal de Saúde, José Carlos de Oliveira, responsável pela supervisão dos trabalhos do grupo, estava presente.

Nossa intenção não era apenas tirar os detentos da cadeia e colocá-los para trabalhar, mas também ressocializá-los. No início, enfrentamos alguns preconceitos, pois as pessoas não conheciam o projeto em Guaratuba. No entanto, construímos nossa reputação dia após dia, conquistando a confiança de nossos colaboradores, principalmente na área da saúde, predominantemente feminina. Hoje, os resultados são espetaculares. Temos o respeito não apenas de nossos colegas de trabalho da área da saúde, mas também de outros departamentos, que nos procuram para saber como funciona“, relata.

Ele ressalta que o prédio totalmente revitalizado pelo grupo estava há mais de 20 anos sem manutenção. Agora, apresenta nova pintura interna e externa, piso substituído, banheiro reformado, telhado revisado, varanda instalada, sistemas hidráulico e elétrico revisados, além de climatização e instalação de cortinas.

Este é apenas um dos exemplos. Cerca de 14 propriedades de saúde foram completamente reformadas, e todas as 24 receberam algum tipo de trabalho, proporcionando não apenas uma oportunidade de ressocialização, mas também uma mudança de perspectiva na vida das pessoas envolvidas no projeto“, avalia.

O coordenador de manutenção da Secretaria Municipal de Saúde, José Carlos de Oliveira, é responsável pela supervisão dos trabalhos dos detentos que participam do programa. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral
O coordenador de manutenção da Secretaria Municipal de Saúde, José Carlos de Oliveira, é responsável pela supervisão dos trabalhos dos detentos que participam do programa. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral

José Carlos enfatiza a eficácia do Mãos Amigas, destacando que muitos ex-detentos que participaram do programa nos últimos dois anos, após cumprirem suas penas, abandonaram o crime devido aos conhecimentos adquiridos no projeto e agora trabalham legalmente.

A sociedade reconhece a importância desse trabalho, pois as obras que realizamos, como este espaço aqui, onde a população costumava esperar sob sol ou chuva, mostram que foram possíveis graças ao esforço deles“, conclui.

A Unidade Básica de Saúde da comunidade rural do Descoberto foi completamente revitalizada pelos detentos. Cerca de 14 prédios já tiveram os mesmos serviços e 24 receberam algum tipo de reforma. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral
A Unidade Básica de Saúde da comunidade rural do Descoberto foi completamente revitalizada pelos detentos. Cerca de 14 prédios já tiveram os mesmos serviços e 24 receberam algum tipo de reforma. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral

Cumprindo minha pena da melhor maneira possível”, diz detento


Um dos participantes do projeto é João Aguiar (nome fictício), de 48 anos, que está preso provisoriamente na Cadeia Pública de Guaratuba desde 2022, aguardando julgamento. Ao JB Litoral, João relata que se envolveu em uma briga de bar em outro município e, durante o confronto, desferiu uma facada em um homem, que acabou morrendo. Segundo ele, fugiu da cidade pois a família da vítima queria matá-lo.

Eu nunca havia me envolvido em uma confusão desse tipo, nunca havia sido preso. Foi a primeira e espero que última vez. Infelizmente, foi em legítima defesa, pois estavam me agredindo violentamente e eu já estava sem forças“, diz.

Seis meses após a briga, ele foi preso em Guaratuba, onde aguarda julgamento pelo Tribunal do Júri, previsto para este ano. Emocionado, João expressa arrependimento, reconhecendo a necessidade de cumprir sua pena e buscando aprender e evoluir durante sua reclusão.

O Projeto Mãos Amigas tem vagas para até 12 detentos. Atualmente, seis fazem parte da iniciativa e trabalham, diariamente, na manutenção de prédios públicos de Guaratuba. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral
O Projeto Mãos Amigas tem vagas para até 12 detentos. Atualmente, seis fazem parte da iniciativa e trabalham, diariamente, na manutenção de prédios públicos de Guaratuba. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral

É uma experiência terrível, pois ninguém tem o direito de tirar a vida de outro ser humano. Peço perdão à família da vítima e à minha família, pois não gostaria de ter feito isso. Estou pagando por isso na prisão e, felizmente, tive a oportunidade de trabalhar“, conta.

Ele relata que começou a trabalhar assim que foi preso, inicialmente cortando cabelo dos detentos, depois na cozinha e agora no Mãos Amigas.

Esta oportunidade proporcionada pelo DEPEN e pela Prefeitura, tanto para mim quanto para os outros detentos que estão trabalhando fora, tem sido muito boa. Estou cumprindo minha pena da melhor maneira possível, pois sei que devo pagar por meus atos. Estou trabalhando e ganhando algum dinheiro, o que me permite ajudar minha família e, no futuro, voltar ao mercado de trabalho quando sair daqui“, conclui.


Uma segunda chance


Para Bianco, gestor da Cadeia Pública de Guaratuba, todos merecem uma segunda chance.

É isso que o projeto busca: fazer com que cumpram suas penas pelos crimes cometidos, mas também oferecer uma nova oportunidade para que, ao saírem daqui, sejam pessoas melhores para a sociedade. Se cometeram um crime, que paguem por ele, mas voltem à sociedade como seres humanos melhores“, finaliza.

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