“O caminhão era o sonho da vida dela”, dizem filhos de Sandra Lopes, caminhoneira de Paranaguá que faleceu após bitrem tombar na PR-239


Por Luiza Rampelotti Publicado 28/04/2023 às 19h01 Atualizado 18/02/2024 às 10h19

Uma história de amor que foi encerrada precocemente. Filhos que não poderão contar com a presença da mãe nos momentos mais importantes de suas vidas, como em seus casamentos ou nascimento dos próprios filhos. Tudo isso porque uma tragédia tirou a vida da caminhoneira Sandra Aparecida Fabrício Lopes, de 51 anos, parnanguara.

O acidente aconteceu no domingo de Páscoa, dia 9 de abril, por volta das 17h, quando ela trafegava com seu caminhão bitrem na PR-239, km 251, trecho entre os municípios de Reserva e Cândido de Abreu, no Paraná, e acabou tombando na margem direita da via. A cabine do veículo bateu em uma árvore e Sandra teve traumatismo craniano na hora.

O corpo foi encaminhado para o Instituto Médico Legal (IML) de Ponta Grossa e, depois, transferido para Paranaguá, onde aconteceu o velório e sepultamento na noite de segunda-feira (10), marcado por muita emoção.

Começo da vida nas estradas


Sandra começou a se encantar com o mundo das estradas em 2009, quando conheceu seu marido, Renato Lemes Lopes, que já era motorista de caminhão. Para ele, ela é a ‘Lindinha’.

Nunca chamei ela pelo nome, sempre por Lindinha. Quando nos conhecemos, ela começou a viajar comigo, a se interessar pelo caminhão, a gostar. Um dia, a deixei dirigir, gostou tanto que não quis largar mais. Depois disso, em toda viagem ela tocava o caminhão”, conta Renato ao JB Litoral.

Ainda muito abalado pela morte da esposa, o motorista de 46 anos, natural do Mato Grosso do Sul, precisa de tempo para conseguir falar sobre ‘Lindinha’. Em meio às lágrimas, ele conversa com a equipe de reportagem para relatar sobre a convivência com a mulher e, também, sobre o fatídico domingo de Páscoa.

O casal se conheceu em 21 de abril de 2009; Renato, que começou a trabalhar com caminhão em 2000, já levava a vida na estrada, transportando cargas entre cidades e estados diferentes em seu bitrem. O amor falou mais alto e ele decidiu vir à Paranaguá para viver um relacionamento com Sandra.

Por um determinado tempo ela até tentou se afastar de mim, mas eu já estava apaixonado, ela já era a minha vida, então, vim atrás dela. Como todo mundo fala: era para ser”, relembra.

O marido Renato estava dirigindo outro caminhão, na frente de Sandra, e voltou para tentar retirar o corpo das ferragens. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral


Dona de um grande coração


Uma mulher extrovertida, brincalhona, guerreira e com um coração enorme. Essa é a descrição do marido, dos três filhos, dos amigos e conhecidos de Sandra.

Ela sempre queria todo mundo sorrindo, todo mundo unido. Era aquela mulher que se pudesse recuperar todas as pessoas da rua e colocar para dentro de casa, ela fazia isso. Era uma pessoa nota mil”, diz Renato.

O filho mais velho, Abdul Fatteh Hamud, de 27 anos, constata que a mãe sempre estava mais preocupada com o outro, do que com si mesma. “Foi assim a vida inteira. Ela se preocupava com todo mundo e se deixava em segundo plano. Sempre foi uma pessoa muito solidária”.

Prova disso é que Sandra tinha um problema no rim, o qual deveria ser operado, mas sempre se preocupou mais em reunir recursos para a cirurgia no braço de Renato, por exemplo, ou com outros problemas de saúde dos filhos. O marido sofreu um acidente em 2000 e, em meados de 2009, começou a sentir muita dor no braço, pois a placa e o parafuso que haviam sido colocados no membro se soltaram.

Como meu braço doía muito, ela me incentivou a operar. Para isso, fez uma rifa, a qual vendia nas filas de caminhões do Brasil inteiro, com sol quente ou chuva. Ela não tinha vergonha, onde parava, falava da situação e vendia. Dessa forma, juntou mais de R$ 10 mil para a minha cirurgia de R$ 7 mil. Fiz a operação, mas precisei de repouso e não obedeci, então meu braço quebrou de novo; a Lindinha batalhou, até a véspera da morte dela, no sábado, para que fizesse uma nova. Na segunda-feira (10), de manhã, o médico mandou uma mensagem para ela dizendo que havia conseguido a minha cirurgia na Santa Casa e que iria operar. Ele não sabia e eu tive que dar a notícia”, conta Renato.

Os filhos Abdul e Lailla relembraram os momentos ao lado da mãe. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral


Ela insistiu para ir viajar


Um dia antes do acontecimento trágico, o marido havia aconselhado a mulher a ficar em casa e passar a Páscoa com a família. Mas, segundo ele, ela insistiu em ir, pois não queria deixa-lo sozinho por conta do problema no braço.

Ela disse que, como era perto, poderíamos ir e voltar no mesmo dia para fazermos algo à noite com a família”, relembra. Infelizmente, o roteiro não seguiu o planejado.

No sábado (8), Sandra e Renato saíram de Paranaguá, à noite, um em cada caminhão, com os bitrens vazios, em direção a Cândido de Abreu, para carregar os veículos e voltar para descarregar. O trajeto até a cidade é de 394 km, mas o casal já havia feito o mesmo percurso diversas vezes, portanto, não havia motivos para preocupação.

Chegando na fábrica, Renato carregou primeiro e, depois, Sandra. Com os caminhões cheios, eles voltaram para a estrada. “Arrumei os rádios, sintonizei e fui na frente. Desci a Serrinha, um lugar que ela já era acostumada, e fomos nos comunicando. Já estávamos descendo a segunda Serra quando falei para ela tomar cuidado com um buraco que tinha em uma curva, mas ela não respondeu. Continuei chamando, chamei umas 30 vezes, e ela não respondeu. Ali começou a me dar uma dor no peito, uma sensação ruim. Estacionei em cima da pista e, em seguida, parei um casal que estava vindo de carro e perguntei se eles tinham visto um caminhão atrás”, conta.

Dia trágico


O casal que ajudou Renato havia, sim, visto o caminhão de Sandra, um Volvo FH12, mas já tombado. Eles o levaram até o local do acidente.

Quando desci do carro, ali eu já tinha certeza [da morte]. Vi a cabine de cara com uma árvore grossa, pulei em cima do para-brisa que estava todo quebrado, vi ela, e comecei a puxar”, se desespera Renato.

O caminhoneiro, que só queria aproveitar a safra para juntar dinheiro e levar a esposa passear, teve que ver o corpo de sua Lindinha ali, sem vida. “Prometi que ia levar ela para Gramado”, lamenta.

Eu falei para ela ficar em casa, almoçar com os filhos. Mas ela disse: ‘se você for, vou também, pois você não pode mexer com lona sozinho. Se tivesse escutado ela e falado que também iria ficar, hoje ela estaria aqui e essa reportagem não existiria. E embora falem que não é minha culpa, que é coisa do destino, me sinto culpado, pois eu vim lá do Mato Grosso do Sul, tirei ela da vida que ela tinha e a coloquei dentro do caminhão”, desabafa Renato.

Sandra fazia o que amava


Ao contrário de Renato, o filho de Sandra, Abdul, e as filhas, Yasmin Hamud, de 25 anos, e Lailla Hamud, de 17, não culpam o padrasto. Eles sabem que foi a própria mãe que escolheu ser caminhoneira e que, na profissão, ela se encontrou e foi muito feliz.

A vida dela era o caminhão. Ela largou a vida estável e tranquila, vendeu o carro e foi tentar realizar o sonho dela, que era ter seu caminhão e viajar pelo Brasil fazendo o que gostava. Não tinha como tirarmos isso dela. Ela vivia mais no caminhão do que em casa”, diz Abdul. “Temos consciência disso e é o que nos tranquiliza, afinal, ela estava fazendo o que amava, o que queria”, complementa.

Mas ele conta que, ao princípio, os filhos não foram tão compreensivos com a escolha profissional da mãe. Eles tentaram dissuadi-la, porém, não conseguiram.

Tínhamos medo, era perigoso, mas sabíamos que não conseguiríamos tirar, pois já fazia parte dela”, comenta o filho mais velho.

A filha mais nova, Lailla, era a única que morava com a mãe, o padrasto e uma filha de Renato, nos meses recentes, na residência de Sandra, no bairro São Vicente. Ela relembra que a mãe tinha a convidado para ir viajar no dia 9.

Desde os três anos a mãe começou a me levar para viajar. Não lembro até quando fui, mas chegou uma época em que falei que não queria mais. Toda vez que tinha um tempo, ela ainda me chamava para ir junto, inclusive, no dia da Páscoa”, conta.

O que fica é a saudade


Apesar da saudade da mãe, os filhos entendiam que as viagens eram o que a fazia feliz e, com os anos, se acostumaram com o pouco tempo de convivência. Porém, no início de 2023, Sandra ficou cerca de um mês somente em casa, convivendo com os filhos, parentes e amigos

Eu me acostumei novamente a tê-la sempre aqui; dormia com ela, estávamos sempre para lá e cá juntas, porque ainda era férias. Dos meus 10 aos 15 anos, ela ficava uma semana em casa e viajava na outra, então, era mais difícil a convivência e a saudade apertava bastante. Mas agora estávamos bem próximas, com a relação de mãe e filha e de melhores amigas”, diz Lailla.

A filha Yasmin fala a mesma coisa. “Tem coisas que não entendemos, mas depois que acontece algo, descobrimos o porquê. Nesse último ano ela estava muito mais próxima dos filhos. Estava em casa dia sim, dia não, e quando chegava mandava mensagem para reunir todos”.

O que vai ficar é a saudade, uma sensação estranha, o telefone não toca o número dela. Às vezes, acordávamos às 6h e já tinha mensagem dela de bom dia enviada às 4h da manhã. Essa é a parte mais difícil. Ainda parece que ela tá fazendo uma viagem e que, daqui a pouco, vai chegar aqui”, comentam os filhos. 

Sandra faleceu em um acidente de caminhão, no domingo de Páscoa (9), após o bitrem que ela dirigia tombar e bater numa árvore. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral


Mulher corajosa e inspiradora


Unânimes, os filhos destacam a característica mais marcante de Sandra: coragem. Foi pela coragem de abandonar a vida estável e se arriscar em uma nova profissão, depois dos 30 anos, que ela se tornou uma inspiração para tantas outras mulheres e meninas.

É difícil definir a mãe em uma palavra, mas, se fosse escolher uma, seria coragem. Ela sempre foi muito corajosa e isso vai ficar de legado para nós. Tentaremos seguir, dentro do possível, dentro do nosso tempo”, diz Abdul.

Lailla fala sobre como as pessoas se impressionavam quando ela contava que a mãe era caminhoneira. “Quando alguém nos conhecia e perguntava “e a sua mãe?” e contávamos que ela era caminhoneira, era sempre um choque, um espanto, as pessoas questionavam se ela dirigia mesmo, se ela tinha o caminhão dela etc. É uma profissão que você não costuma ver mulheres, então, muita gente realmente a levava como uma pessoa inspiradora”, comenta.

Coragem que se transformou em força de vontade para conseguir viver o seu sonho. Sandra reprovou seis vezes antes de conseguir, finalmente, a habilitação na categoria E. “Foi uma luta para conseguir a carteira, mas ela não desistiu. A mãe sempre passou em tudo de primeira, no carro, e nas outras categorias, mas para tirar a ‘E’ foi complicado, talvez porque ela quisesse muito e por isso ficava sempre nervosa”, relembram os filhos.

Caminhoneira, de salto, make e cropped


Desafiando o estereótipo de que caminhão é para homens, Sandra conseguia fazer o serviço de salto alto, maquiagem e, de preferência, um cropped. “Sempre de salto. Toda vez que ia viajar, fazia maquiagem, cabelo, colocava a melhor roupa. Nos últimos meses, ela estava investindo no cropped”, brincam Abdul, Yasmin e Lailla.

Mas Renato revela que, assim que ela entrava no caminhão, tirava o salto, a roupa e ficava só de bermuda. Quando saía do caminhão, para abastecer ou ir ao posto, por exemplo, fazia novamente o ritual.

Quando ela chegava no posto todo mundo olhava e se perguntava; “é caminhoneira?”. E eu, de longe, abastecendo e observando, porque todo mundo virava o pescoço para olhar aquela mulher com salto, maquiagem e cabelo feito”, conclui o marido.