Restaurando a função social da propriedade: um olhar diferenciado sobre a ocupação na Vila Eliana, em Guaratuba


Por Luiza Rampelotti Publicado 08/08/2023 às 12h24 Atualizado 18/02/2024 às 19h31

Após anos sem a atuação da Defensoria Pública do Estado (DPE) no Litoral, desde março deste ano o órgão está atendendo em toda a região e já conquistou vitórias significativas nos municípios litorâneos. A última conquista legal aconteceu recentemente, no início de agosto, quando a DPE impediu, legalmente, o despejo forçado de 34 famílias que ocupam um terreno na Vila Eliana, em Guaratuba.

De acordo com a defensora pública Helena Grassi Fontana, as famílias ocupam, no mínimo, desde 2018, um terreno particular composto por 34 lotes que estavam sem utilidade. A contenda jurídica teve início em 2019, quando o proprietário interpôs uma ação de imissão na posse, solicitando a remoção das famílias que ocupam os lotes.

Entretanto, a pandemia da COVID-19 trouxe um novo contexto, resultando na suspensão temporária de despejos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para preservar a segurança e bem-estar das famílias, especialmente as mais vulneráveis, em meio à crise.

Contudo, com o fim da pandemia, recentemente, em junho de 2023, a decisão de despejo foi retomada, desencadeando uma resposta ativa da DPE em Guaratuba. A defensora pública enfatiza que essa medida não aderiu aos procedimentos legais corretos, os quais abrangem audiências públicas, exploração de alternativas de moradia e o envolvimento obrigatório da Defensoria Pública em casos que envolvem grupos vulneráveis.

Decisão para despejo não atendeu aos ritos legais

A Defensoria Pública solicitou sua intervenção no processo devido à inobservância do Código de Processo Civil, que estabelece um procedimento específico em casos de disputa sobre posse e propriedade com grande número de pessoas no polo passivo. O juiz, ao compreender a fundamentação apresentada pela Defensoria, emitiu uma decisão alinhada com os mesmos princípios defendidos por esta instituição. Especificamente, visou revogar a ordem de despejo ilegal, que não atendia aos padrões estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Conselho Nacional de Justiça. Estes padrões incluem a realização de audiências públicas, a escuta das partes envolvidas, a visita ao local, a participação da Defensoria Pública e do Ministério Público”, explica, ao JB Litoral, Helena Grassi Fontana.

No local, desde 2018, residem famílias em situação de vulnerabilidade econômica e social. Idosos e enfermose estão entre os ocupantes. Foto: DPE

A nova decisão foi dada pelo juiz substituto Rafael da Silva Melo Glatzl, em 1º de agosto, revogando as decisões prévias da juíza Giovanna de Sá Rechia, dadas em 6 de maio de 2019, e da juíza substituta Gresieli Taise Ficanha, em 21 de junho de 2023, e acatando a atuação da Defensoria Pública, bem como a observância dos quesitos fixados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, como inspeções judiciais, audiências públicas e planos de realocação.

Polícia já estava na porta

A defensora comenta que embora nenhuma das etapas prévias previstas no Código de Processo Civil e na ADPF 828 tenham sido cumpridas, antes do ingresso da Defensoria no processo já havia a ordem de desocupação e a presença policial para sua execução. “As partes já haviam recebido a intimação para desocupar o local, com a presença policial agindo de maneira coercitiva para executar o despejo. Muitas famílias são de pessoas idosas, enfermas, e todas hipossuficientes, isto é, vulneráveis economicamente e em uma condição de notável precariedade”, conta.

Helena relembra de um incidente particular que a comoveu profundamente. “Tratava-se de um senhor cujos dois pés eram amputados, e que me questionou: “Doutora, como eu posso sequer sair de minha casa? Será que vão demolir minha moradia comigo dentro?”, lamenta.

Função social da propriedade

A defensora ressalta que as 34 famílias em situação de vulnerabilidade se apossaram dos lotes vagos para estabelecerem moradia e que, com o período de pandemia, se mantiveram no local. Ela também explica sobre o direito à propriedade, esclarecendo que a posse de um imóvel deve ser exercida de maneira a cumprir sua função social.

No âmbito do direito à propriedade, caso a posse de um imóvel não seja exercida de maneira a cumprir sua função social, a propriedade pode ser perdida, conforme preconizam instrumentos como a usucapião, usucapião coletiva e desapropriação por interesse social, que é o caso desses 34 lotes. Aparentemente, esses terrenos não estavam sendo utilizados”, diz.

A Constituição Federal estipula que um terreno não utilizado para moradia, trabalho ou cultivo não está cumprindo sua função social, explica a defensora pública Helena Fontana. Foto: DPE

Helena ainda esclarece que a Constituição Federal estipula a função social da propriedade e exemplifica que um terreno não utilizado para moradia, trabalho ou cultivo não está cumprindo sua função social. “Essas famílias ocuparam esses lotes, atribuindo uma finalidade social ao terreno no que tange à moradia, especialmente em um contexto como o da pandemia, em que o direito à moradia transcendeu sua natureza física, representando saúde, vida, segurança e educação, dado o imperativo do recolhimento”, informa.

E o proprietário do terreno?

A defensora também afirma que, mesmo que ao fim do processo seja determinada a desocupação, é primordial desenvolver um plano detalhado para a realocação dessas famílias. Ela explica que outra possibilidade é buscar um acordo que envolva uma compensação financeira ao proprietário, permitindo a permanência das pessoas no local.

A propriedade, embora conceda direitos ao proprietário, requer o exercício da função social, que, no caso presente, foi efetuada pelas pessoas que se refugiaram ali durante o período pandêmico. Em face da vulnerabilidade econômica e carência dos envolvidos, não se pode simplesmente tirar essas pessoas do local e jogá-las na rua. É previsto todo um rito pelas resoluções do Conselho Nacional de Justiça justamente para ouvir as pessoas, para o município apresentar um plano de realocação, o provimento de aluguel social, oferecimento de habitações populares e, inclusive, a exploração de acordos de indenização ao proprietário, a fim de preservar a permanência das pessoas no local”, destaca Helena Grassi Fontana.

O JB Litoral contatou a Prefeitura de Guaratuba a fim de obter informações sobre possíveis planos relacionados à situação das famílias da Vila Eliana. Assim que o Poder Municipal se manifestar, essa reportagem será atualizada.

Morador faz relato emocionante

A história de luta e desafios enfrentada pelos moradores da Vila Eliana revela as dificuldades que muitos brasileiros enfrentam quando se deparam com questões de propriedade, condições de vida e acessibilidade. Em um relato emocionante ao JB Litoral, seu Ivandro Luiz Cruz da Silva, de 58 anos, diabético e com os pés amputados, compartilha sua experiência de ter aquirido um lote no local, sem conhecimento das pendências legais e das adversidades que surgiriam.

De acordo com ele, que mora sozinho na Vila Eliana há cerca de um ano, a propriedade foi adquirida por meio de uma troca de bens com um terreno localizado em Curitiba, na região do bairro Água Verde. “Esse terreno saiu para mim por R$ 150 mil; fiz um negócio num terreno que eu tinha lá em Curitiba, o homem me iludiu e agora não posso voltar atrás, passei tudo para o nome dele. Fiz um negócio meio louco e vim cair aqui, mas me agradei do lugar. E agora veio esse problema aí. Já fazia 15 anos que eu morava em Curitiba, tinha construído, só que não sabia que aqui estava embargado”, conta.

Com os pés amputados devido à diabetes, o morador, que trabalhou por cerca de 30 anos como caminhoneiro, enfrenta dificuldades adicionais para se locomover. Ele relata ter passado por meses de extrema precariedade, enfrentando fome e incertezas sobre seu futuro, ainda em Curitiba.

Passei fome por uns três meses até o INSS entrar em conclusão da amputação dos pés. Ainda mesmo assim fui ao INSS lá em Curitiba, na Cândido Lopes, e me fizeram tirar as faixas, saí me arrastando para confirmar a amputação, para poder me darem o benefício. Agora estou encostado e tenho que comparecer em março do ano que vem novamente para uma nova perícia”, desabafa.

Eles vão ter que me jogar numa valeta”, se desespera morador

Além disso, a área ocupada na Vila Eliana enfrenta sérios problemas de acessibilidade. Seu Ivandro depende de muletas para se deslocar, uma vez que uma cadeira de rodas não é viável devido ao terreno acidentado e lamaçal. A rua local, que foi preenchida com entulhos ao longo do tempo pelos próprios moradores, dificulta ainda mais sua mobilidade. O posto de saúde mais próximo está a cerca de três quilômetros de distância, o que representa um desafio considerável para alguém com limitações físicas.

Mesmo assim, o morador expressa seu desejo de regularizar a situação da propriedade e ter acesso a serviços básicos, como água e eletricidade de forma legal. Ele conta que a comunidade local se mobilizou para criar uma rede clandestina de água e energia, mas reconhece que é responsabilidade da Prefeitura avaliar e garantir esses serviços de maneira adequada.

Sobre a intimação para reintegração da posse, anteriormente à atuação da Defensoria Pública, Seu Ivandro conta que entrou em desespero. “Eu falei e agora? O que que eu vou fazer? Não tenho mais lugar nenhum, eles vão ter que me jogar numa valeta, ou sei lá o que que eu vou fazer na minha vida. Eu não tenho condição”, se emociona.

Agora, enquanto aguarda ansiosamente os desdobramentos do processo legal, o morador permanece com a esperança de que sua luta e determinação o permitam permanecer na área que aprendeu a chamar de lar.

Atuação da Defensoria Pública no Litoral

Como já citado, desde março a Defensoria Pública retornou com suas atividades para o Litoral, após seis anos sem atuação na região, desde 2017. O órgão tem atendimento em diversas localidades, incluindo Paranaguá, Guaratuba, Matinhos, Morretes, Antonina e Pontal do Paraná.

Em Guaratuba, são três defensoras atuando na DPE. “Estamos monitorando e participando ativamente de todas as ações coletivas que abordam questões de posse e propriedade, especialmente aquelas que envolvem muitas pessoas no polo passivo. Em tais casos, buscamos a habilitação para intervir nos processos, já que percebemos que havia situações em que a Defensoria Pública não havia sido notificada pelos tribunais para atuar”, informa Helena Grassi Fontana.

A defensora explica que é possível que o proprietário dos lotes seja indenizado pela Prefeitura, garantindo que as famílias continuem no local. Foto: DPE

Ela também ressalta que a recente decisão em Guaratuba tem impacto pioneiro. “Isso se reflete no fato de que os próximos processos judiciais estão sendo direcionados à Defensoria Pública pelos juízes, demonstrando o reconhecimento da nossa atuação efetiva na região litorânea”, conclui.