A mulher por trás de muitos títulos e medalhas: Flávia Justus e a psicologia esportiva


Por Katia Brembatti Publicado 05/10/2021 às 15h26 Atualizado 16/02/2024 às 15h20

Quando ia ao estádio Couto Pereira, ainda pequena, acompanhada do pai e do avô, e vivia a emoção de entrar no gramado, de mãos dadas com jogadores, Flávia Brenner Focaccia Justus estava construindo seu amor pelo esporte, sem nem imaginar qual seria sua profissão. Ela não virou atleta – no máximo, participou de algumas competições de pesca –, mas seu consultório está repleto de medalhas e troféus, recebidos por pessoas que já treinou. Não o corpo, mas a mente. Curitibana de nascimento e guaratubana de coração, Flávia é psicóloga esportiva e tem participação direta em várias conquistas, como títulos do Coxa e vitórias nas Paralimpíadas de Tóquio. Agora, está no Peru, acompanhando a seleção brasileira de Tiro Esportivo no Mundial Júnior, que acontece até 10 de outubro. 

Apesar do vínculo com os esportes desde muito jovem, só quando estava terminando a graduação em Psicologia, na Universidade Tuiuti, em Curitiba, é que passou a considerar a atuação na área. Fez o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre atividades em equipe, uma ação muito comum no mundo esportivo. Na época, no início dos anos 2000, foi dar uma palestra no escritório de advocacia em que o marido Roberto Cordeiro Justus trabalhava e entre os ouvintes estava Giovani Gionédis, então candidato à presidência do Coritiba Football Club, que teria ficado tão empolgado com a “preleção” que convidou Flávia para, se ele vencesse a eleição, atuar com os jogadores. 

Trabalho no Coxa


Quando tomou posse no Coritiba, em 2002, o novo gestor cumpriu a promessa. Mas antes haveria um teste. Ela foi chamada para falar com a equipe prestes a entrar em campo para um Atletiba. A atuação de psicólogos esportivos naquela época não era usual e muitos estranharam a presença de uma mulher entre os atletas. Alguns acharam que seria uma conversa na linha motivacional, até hoje muito comum em times de futebol. Mas Flávia deixou claro que não era esse o trabalho que fazia: em síntese, ela identifica competências e pontos fracos e encontra caminhos para melhorar o desempenho. Mas, naquele dia de clássico, não seria possível fazer um trabalho muito profundo. Nos menos de dez minutos que teve, falou sobre o propósito de ganhar, destacando que cada um deveria encontrar suas razões para ser feliz. O resultado: vitória em campo e a contratação como psicóloga. 

Começou enfrentando todos os tipos de desafios, como técnicos que diziam não aceitar mulheres na equipe – por serem uma fonte de distração (!) – e outros que tinham até superstições, dizendo que não davam sorte. Mas, do alto de seus 1,55m, Flávia se agigantou e não se deixou intimidar. Aos poucos, ela foi vencendo a resistência inicial ao apresentar números de desempenho e rendimento. Foram quase 15 anos no Coxa, em momentos de conquistas e também de derrotas. Nesse período, mesmo com as trocas de gestões, a psicóloga permanecia no clube, a partir da confiança estabelecida em seus métodos. 

Flávia buscou especialização na área de psicologia esportiva, em São Paulo, e depois passou para o master de programação neurolinguística. Como precisa mergulhar na lógica dos esportes, até já fez curso para ser técnica de futebol. “Nunca parei de estudar”, conta ela, que também foi entender a fisiologia corporal a partir de um curso na área de Educação Física na Universidade Federal do Paraná (UFPR). “O trabalho vem de uma combinação de corpo e mente”, resume. 

Experiências com técnicos

Um espectro de todos os perfis de profissionais fez parte do tipo de técnicos com os quais Flávia trabalhou, de Joel Santana a Antônio Lopes – de quem virou consultora. A relação com Renê Simões foi tão boa que se transformou em um livro, escrito em parceria. “Fiz uma avaliação dele e ele publicou”, conta. Cada técnico que chegava ao Coxa era um recomeço para conquistar a confiança. Foi assim com Cuca, Ney Franco e tantos outros – difícil até de contar, pois passam dos dedos das mãos. 


Também havia muita resistência por parte dos jogadores. Quando eram encaminhados para o tratamento psicológico, muitos respondiam: “eu não tenho problema”. Aos poucos, Flávia ia mostrando que o trabalho envolvia a avaliação de desempenho, além de acompanhamento nos processos de recuperação de lesões e o desenvolvimento de estratégias de inclusão para jogadores vindos de outros países, em fase de adaptação cultural. Em parceria com os treinadores, trabalhava as questões de ansiedade e traumas de partidas anteriores. 

Com o passar do tempo, passou a atuar desde as categorias de base até a preparação para aposentadoria dos atletas, incluindo o acompanhamento do ídolo coxa-branca Alex. Esse é um processo longo, de profissionalização da psicologia esportiva, mostrando a importância nos resultados dos clubes. Até hoje, alguns times das principais divisões do futebol brasileiro não contam com psicólogos esportivos em seus quadros.

Momento decisivo

A psicologia esportiva funciona como diferencial em competições de alto nível. “As questões física e técnica estão muito equilibradas entre os atletas de campeonatos internacionais. E muitas vezes é o aspecto mental que acaba sendo definidor”, comenta Flávia. Ela conta que trabalha a confiança para lidar com a ansiedade e para focar no resultado. A profissional lembra que há pessoas que reagem bem a pressões e outras que enxergam como ameaça. 

Foto: Arquivo Pessoal


Flávia lembra que o debate sobre a saúde mental de atletas está em alta, principalmente por causa do episódio envolvendo Simone Biles, ginasta norte-americana que chegou a Tóquio como a grande estrela das Olimpíadas e acabou desistindo da maioria das competições, assumindo que não estava bem. Há algum tempo, lembra a psicóloga, a decisão de abandonar as disputas seria vista tão somente como fraqueza ou falta de preparo, mas também foi encarada como um ato de coragem. 

Ainda nos Jogos Olímpicos, a atitude da skatista brasileira Rayssa Leal revelou que a forma de enxergar a competição interfere nos resultados – e que a leveza é positiva e não é sinônimo de falta de comprometimento. “Há quem consegue ver tudo como desafio e oportunidade”, comenta Flávia. Ela destaca que fora do Brasil há muitos anos a psicologia esportiva faz parte da preparação dos atletas e que só recentemente por aqui é que ganhou importância. E, depois das Olimpíadas, a procura aumentou mais. 

Próximos passos


Flávia tem o consultório Podium, em Curitiba, e muito antes da pandemia, já trabalhava com atendimentos remotos/virtuais, principalmente para acompanhar atletas que moram em outros lugares do Brasil e do mundo, ou mesmo durante alguma competição. Faz tempo que ela deixou de atender apenas o futebol – já atuou com atletas de diversas modalidades, como MMA, beach tennis, esgrima, natação, golfe, hipismo, basquete e até pôquer. O foco, no momento, está no tiro esportivo, como contratada pela confederação brasileira. 

No seu consultório, em meio aos troféus e medalhas que ganhou dos atletas, como forma de reconhecimento – “sei o que significa quando me entregam” – um quadro se destaca por ser fora do tema. É um cartaz do Cirque du Soleil. Quando a trupe internacional esteve em Curitiba, Flávia foi chamada para acompanhar os artistas/atletas. Além de ficar junto nos bastidores, via os espetáculos da coxia. Conta que foi uma grande emoção, inesquecível, daquelas que se juntam ao orgulho que sente pelo avô, fundador da Associação Paranaense de Reabilitação (APR) e das próprias conquistas, como o título de mulher empreendedora, recebido em 2015. Assim, a psicóloga de 43 anos segue a vida, comemorando as próprias vitórias e se emocionando com as conquistas das pessoas a quem ajudou. 

Atuação fundamental em competições de tiro

Flávia Justus sentiu o gosto do reconhecimento quando a Confederação Brasileira de Tiro Esportivo (CBTE) a escolheu para acompanhar os atletas no Mundial Júnior, que está acontecendo no Peru até o dia 10 de outubro. “Podiam levar três pessoas e abriram mão de mandar um dirigente para que eu fosse”, comenta. 

Foto: Arquivo Pessoal

Ailton Patriota, coordenador técnico da CBTE, comenta que soube do trabalho da psicóloga por meio de atletas e que encontrou nela as atribuições que procurava. “Antes ficávamos restritos a análises técnicas e comportamentais, sem estratégia de abordagem para cada personalidade. Hoje temos os perfis bem definidos de cada um e como tirar o máximo proveito dessas informações para atingir os objetivos”, destaca.

Entre os atletas que são acompanhados por Flávia está Philipe Chateaubrian. Ele se mudou para Curitiba no início do ano passado e buscou recomendações de profissionais com atuação em psicologia esportiva. Buscava aprimoramento. Foi finalista nos Jogos Pan-Americanos de 2019, em Lima, na modalidade pistola de ar, e acredita que fatores mentais interferiram para que não conseguisse a vaga nas Olimpíadas de Tóquio. Agora, realiza consultas periódicas, projetando a classificação para Paris 2024. 

A atleta Camila Cosmoski, de 33 anos, categoria damas, na modalidade fossa olímpica, também elogia a atuação de Flávia Justus. Terceiro lugar geral no campeonato brasileiro de 2020, ela conta que notou que somente a parte técnica não a levaria a alcançar suas metas. “O trabalho mental é responsável por aproximadamente 70% do nosso desempenho. Nesse esporte, nossos pensamentos mandam em nossas ações. Se não sabemos lidar com nossa mente, ela nos trai e nos derruba nas competições”, explica. 

Moradora de Castro, nos Campos Gerais, Camila e o marido, também atleta de tiro, têm casa em Guaratuba e passam parte do tempo na cidade. E cada vez se sente mais próxima de Flávia. “Ela me auxilia a chegar nas competições cada vez mais focada, blindada, sabendo e conhecendo minhas capacidades. Trabalhamos sempre com situações reais, com o que realmente pode ser atingido. Não me vejo atingindo meus objetivos sem a Flávia ao meu lado. Pessoa ímpar, simpática, extremamente competente”, elogia. 

A emoção com a conquista paralímpica

Quando o nadador Eric Tobera entrou na área de balizamento, em Tóquio, Flávia estava acompanhando tudo pela TV e percebendo, na expressão dele, que as recomendações sobre concentração e sobre visualizar o momento estavam sendo seguidas à risca. O resultado veio no formato da medalha de bronze, conquistada no revezamento 4X50m livre misto. 


Paratleta de 28 anos, natural de Telêmaco Borba, nasceu de seis meses de gestação e teve paralisia cerebral. Ele já estava na seleção brasileira quando a pandemia trouxe dificuldades para continuar treinando. Uma piscina improvisada, com 10 metros quadrados, instalada em um sítio, serviu como local de preparação. 

Durante todo esse processo, o paratleta estava sendo acompanhado pela psicóloga e conta como foi fundamental. Quando estava ainda em Tóquio, Eric Tobera conversou com o JB Litoral e comentou sobre a sua rotina, que inclui sessões semanais ou quinzenais. “Se não tiver um bom treinamento mental, nada vai fluir. A psicologia é como o treino: precisamos de fortalecimento corporal e também psicológico”, afirma. 

Um dos desafios apresentados por Flávia, em um labirinto, virou lema para Eric: o caminho necessário para ligar o ponto A ao ponto B. “Ela é sensacional, fora de série, sem comentários”, define. A psicóloga também não poupa elogios a ele e conta a emoção que sentiu ao vê-lo conquistar os objetivos. “Deu para perceber que ele estava pronto. Foi uma sensação de dever cumprido”, diz. 


Experiência em Guaratuba

Foto: Lineu Filho/ JB Litoral.

O esporte está presente na vida do casal Roberto e Flávia Justus desde o começo do relacionamento, em um jogo da Copa de 1998, na casa de amigos em comum. Também compartilham o carinho por Guaratuba. Desde o início do namoro, estavam na cidade todo o final de semana – com chuva ou sol. Muitas vezes ficavam em hotel. Quando vieram as filhas, a permanência na praia ficou ainda mais recorrente. “Todo domingo era aquela choradeira porque não queriam ir embora”, conta. Foi aí que decidiram se mudar de vez, matricularam as meninas em uma escola de Guaratuba e, então, Curitiba é que passou a ser o lugar a ser visitado. Por causa dos compromissos profissionais, Flávia passa um ou dois dias por semana na capital. Mas atende a maior parte do tempo diretamente do Litoral do Paraná.  Quando o marido assumiu como prefeito em Guaratuba pela primeira vez, em 2017, Flávia passou a integrar oficialmente o governo, mas – ao contrário do que acontece com a maioria das primeiras-damas, que se dedicam mais à área assistencial – acabou virando secretária municipal de Esportes. “Era a minha área de conhecimento”, resume. Ela afirma que se orgulha do que fez nos oito meses que esteve no cargo, mas acrescenta que a decisão de sair do posto veio da inabilidade para lidar com a burocracia pública. Acostumada à lógica do setor privado, ela conta que queria simplesmente “sair fazendo”, mas o sistema estatal tem regras próprias, como processos licitatórios. Uma vez, achou que estava solucionando problemas ao pedir que uma patrola arrumasse uma área pública, mas descobriu que teria de fazer um projeto e seguir outras normas antes de colocar o plano em prática. Por fim, decidiu se afastar e apenas colaborar com a gestão, no que estivesse a seu alcance.