Câmara acaba com carroças e gera tensão às famílias que sobrevivem da reciclagem


Por Redação JB Litoral Publicado 01/11/2017 às 22h35 Atualizado 14/02/2024 às 23h10

Assinada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a Lei Federal nº 9.503/1997, que criou o Código Brasileiro de Trânsito (CBT), completou no mês passado 20 anos de existência, mesmo assim, a Câmara Municipal de Paranaguá, por meio do Vereador Thiago Kutz (PRB), aprovou na semana passada, um projeto de lei que fere frontalmente o artigo 92 desta lei, o qual definiu dois tipos de veículos de tração animal, a carroça e a charrete.

Vereador não cobra aplicação da Lei dos Carroceiros que existe desde 2005. Foto/JB

O Projeto de Lei nº 4.692/2017 do vereador proíbe o uso de veículos de tração animal no município, algo que a lei federal permite em todo o território nacional, quer para transporte de carga, por meio de carroça, e para transporte de passageiros pela charrete.

O Código Brasileiro definiu, ainda, critérios para transitar pelas ruas e calçadas que devem ser obedecidos pelos seus condutores.

Chama a atenção o fato de as Comissões Permanentes do Legislativo, assim como seu Departamento Jurídico emitirem parecer favorável para a votação do projeto sem considerar a inconstitucionalidade da lei. Entretanto, a redação do projeto também apresenta incoerências não observadas pelos vereadores que o aprovaram durante a apresentação no plenário. Vale destacar que no artigo 1º, parágrafo 2º, a lei cria uma situação ambígua. Ela permite a carroça na área rural, desde que observada a legislação federal vigente, no caso o CBT, que permite em qualquer área das 5.500 cidades no país. Todavia, o artigo 5º é o mais prejudicial da legislação e que pode desencadear um caos social entre os usuários do transporte da carroça que usam para garantir a sobrevivência de suas famílias.

Nele, o vereador impõe a proibição e apenas autoriza a prefeitura a instituir programa de redução do impacto da aplicação da lei, que acaba com a ferramenta que garante alimento, remédios, vestuário e estudo dos filhos dos carroceiros e carroceiras.

Prejuízo para mais de 2000 mil pessoas

Com maior utilização em bairros afastados e, de forma mais intensa na Vila Santa Maria, no Embocui, onde a atividade de reaproveitamento e comercialização de materiais reciclados é a principal fonte de renda, o número de carroceiros na cidade na gestão do Prefeito José Baka Filho (PDT) chegava próximo de 200 condutores. Eles atuaram ativamente nos projetos sociais e de responsabilidade social, como o da Carroça Ecológica. Porém, nos bairros como Vila São Jorge, Primavera, Vila do Povo, região do Jardim Esperança, Vila Guarani e Ilha dos Valadares, as carroças ainda representam a certeza da comida na mesa de muitas famílias.

A reportagem do Jornal dos Bairros esteve na Vila Santa Maria e falou com a Presidente da Associação dos Catadores de Material Reciclável da Vila Santa Maria (ASSEPAR), Sueli Regina Bruning, que sabia do projeto, mas desconhecia quem era o vereador e que já tinha sido aprovado.

Indignada, Sueli questiona; “a prefeitura vai colocar estas famílias em firmas e dar serviço?”

Ela considerou a iniciativa uma tremenda safadeza da parte do vereador, por não perceber que está prejudicando várias famílias que dependem do material reciclável coletado com a carroça. “A ASSEPAR não está tendo condições no momento de abrigar novos associados e, como fechou o lixão, a maioria das pessoas que trabalhavam no local, hoje, depende da carroça para ter o seu ganha pão. Isto é um absurdo. Como que estas pessoas vão poder defender o pão de cada dia dos seus filhos se não tiver condição de trabalhar? O vereador vai dar trabalho para as famílias? A prefeitura vai colocar estas famílias em firmas e dar serviço? Vai bancar as vidas destas pessoas que vão ficar sem serviço?”, dispara e questiona a presidente.

Carroceiras na reciclagem

Na ASSEPAR a reportagem falou, ainda, com a carroceira Joana Dark Terezinha Felipake que informou que o Vereador Thiago Kutz não procurou ninguém para falar de seu projeto. Ela conta que somente no seu bairro são perto de 15 carroças, o que significa 15 famílias e cerca de 100 pessoas. Questionada sobre a importância da carroça para cada família que trabalha na coleta, emocionada, Joana disse que é de suma importância.

“É o sustento da casa. É o que sustenta os filhos, paga a água, a luz, o aluguel, os remédios, as refeições e o alimento e medicamento do cavalo, que é tratado como um membro de nossa família”, explicou.

Mãe de dois filhos, um de 15 e outro de nove anos, Joana diz que os dois são sustentados por ela com o trabalho na carroça. “Eu saio com a carroça de manhã às 6 horas volto às 11 horas, saio de novo às 17 horas e chego às 22 horas. São 10 horas de trabalho por dia e, no final do mês, conseguimos arrecadar entre R$ 350,00 a R$ 400,00 reais. É o que a gente tem, não temos emprego”, desabafa a carroceira.

Questionada sobre como cuida do seu animal, após mostrar a cocheira, ração e remédios, Joana diz que o considera um membro da família.

“Eu tenho minha cocheira, compro e dou milho, farelo e capim. É um membro da família praticamente. Ele é bem gordo e bem bonito”, disse Joana.

A reportagem esteve, também, na Associação de Reciclagem de Paranaguá (AREPA) e falou com a carroceira Josiane Bandeira que trabalha com a carroça desde que o lixão fechou.

Casada e mãe de oito filhos, com idade que varia de dois anos e sete meses até o mais velho de 18 anos, ela trabalha no período da manhã com a carroça que lhe rende um bom dinheiro. “Todos os meus filhos são criados com o dinheiro que ganho da carroça”.

Preocupada ao tomar conhecimento da lei do vereador, ela prevê que para a maioria que depende da carroça como ela, será muito difícil.

“Vamos sobreviver do quê? Vamos roubar? Nós não temos ajuda de ninguém, nem da Prefeitura, por isto sou extremamente contra este projeto”, defende a carroceira.

Maioria dos carroceiros da Vila Santa Maria vive da coleta de material reciclado que movimenta ASSEPAR E AREPA. Foto/JB

Lei dos Carroceiros sem regulamentação desde 2005

Vale destacar que a cidade já possui uma legislação que disciplina o uso de carroças na cidade e contempla o cuidado com o animal  impondo obrigações para categoria, feito pela ambientalista Lourilis Francis Nogueira, aprovada pelo vereador Jozias de Oliveira Ramos (PDT) e promulgada pelo vice-presidente da Câmara Municipal, Alceu Claro Chaves. Trata-se da Lei Municipal Promulgada nº 382/2005 que determina a regularização da situação das pessoas que trabalham com veículos de tração animal (carroças), mas que passados 12 anos ainda não foi regulamentada pela prefeitura e, com isso, não é cumprida na cidade. De certa forma, a lei tem como meta pretende abolir gradativamente esta função, por entender que a atividade explora a força dos animais e gera, como agravante, o risco de maus tratos e abandono. No esboço da lei, num primeiro momento, prega-se a modernização das normas de tráfego pela cidade, como emitir licenças para os atuais carroceiros, além da avaliação veterinária dos animais. A lei tem ainda caráter social e cobra ainda a formalização de convênios para proporcionar oportunidades de estudos e novas profissões aos carroceiros. OU seja, contempla toda categoria.

Um novo Código Estadual de Proteção aos Animais também foi apresentado em 2015 na Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP) pelo deputado estadual Rasca Rodrigues (PV), que reúne um conjunto de normas que devem ser seguidas por tutores e também empresas que incluem animais em suas atividades.  Entre os principais itens que compõem o projeto de lei (PL 163/2015) estão a proibição da venda ambulante de animais e o fim da tração animal no perímetro urbano de municípios paranaenses com mais de 80 mil habitantes. “Tem a lei estadual sendo votada que poderá acabar com a profissão dos carroceiros, como é o caso de Paranaguá. Nós queremos proteger os carroceiros, trazer para eles uma forma de garantia que eles possam sim trabalhar decentemente com seus animais em condições, com a carroça em condições, e esse projeto vem para resolver essa situação”, declarou a ambientalista ao JB em entrevista.