O barreado dos Wicthoffet: uma receita de família com quase 50 anos de história


Por Amanda Batista Publicado 30/10/2023 às 20h11 Atualizado 19/02/2024 às 03h30

Esta é a história de uma receita que já dura 50 anos na família Wicthoffet, que adaptou o tradicional barreado de Morretes, prato típico do Litoral desde o século XVIII. A receita começou com dona Nilva Maria Wicthoffet, de 85 anos.

A senhora, natural do município de Rio Negro, rodou o Sul e Sudeste brasileiro e, por capricho do destino e uma pontinha de influência do marido, Luizito Wicthoffet, acabou parando em Morretes. Posteriormente, ele acabou se tornando vereador da cidade

Quando a família chegou no município, em 1974, o prato já era conhecido na região, mas os cozinheiros guardavam o segredo da receita para os íntimos. Naquela época, havia apenas três restaurantes: o Gatão, fundado pelos Wicthoffet em 1974, na Rua XV, o Madalosso e o Bar do João Felipe.

Foi por acaso que um senhor me ensinou a receita, assim, por cima. Ele não queria me dar todos os segredos do barreado, então um antigo conhecido meu me ensinou a receita certa”, lembra.

A receita “certa” levava massa de tomate, mas Dona Nilva achava que isso fazia o prato fermentar demais devido ao excesso de temperos, então resolveu adaptar com menos ingredientes: usava apenas cebolinha, cebola e alguns outros, mas nunca alho ou tomate, que iam no prato original. Foi ali que surgiu o barreado dos Wicthoffet, que podia ser congelado devido à mudança na receita.

Além de muito elogiado por parentes e amigos, ele evitava o desperdício de dezenas de quilos de carne por semana. “Quando comecei a preparar barreado em maior quantidade para congelar, só usava esses ingredientes: paleta, lombo, músculo, cominho, cebola, louro e pimenta. Misturava tudo, cortava o toucinho em pedaços pequenos e misturava com a carne crua, sem mexer. Depois, adicionava água e levava ao fogo por até 10h para dar o ponto”, explica Nilva.

Nilva e Luiza ensinaram a receita de família ao JB Litoral, que, ao contrário das demais, não leva tomate. Foto: Rafael Pinheiro/ JB Litoral.

Carro-chefe da casa


Nos 17 anos de história do restaurante, o barreado era o carro-chefe nas sextas-feiras e finais de semana. Seu Luizito era um dos fãs da receita, e fazia questão de prepará-la para os visitantes. “Meu marido era um apaixonado por preparar esse prato aos clientes do restaurante, e minhas filhas também adoravam“, diz a cozinheira.

Para dar conta do serviço, havia uma equipe de oito funcionários e Dona Nilva coordenava a preparação de diversos pratos, incluindo saladas e sopas. Eventualmente, eles contratavam ajuda extra, especialmente quando grupos de turistas apareciam para comer o famoso barreado.

 “Alguns preferiam comer com arroz, outros gostavam do caldo, e outros pediam pirão. Tentávamos satisfazer a todos, mas nós, particularmente, gostamos do prato com banana caturra à milanesa frita, salada de cebola e alface e pirão“, afirma.

Família gosta de saborear a receita com banana caturra frita, alface, cebola e pirão. Foto: Rafael Pinheiro/ JB Litoral.

Apesar do sucesso do estabelecimento, com o avançar da idade, Dona Nilva não conseguia mais manter o ritmo na cozinha, e resolveu se mudar para Angra dos Reis (RJ), em 1989, embarcando com o marido e a filha Luciane em busca de uma vida mais próspera no município fluminense.

Com a mudança, ela deixou o restaurante sob responsabilidade da filha Liomara, mas, com o estabelecimento definitivo da família no Rio de Janeiro, o Gatão acabou fechando as portas no início dos anos 90. Hoje em dia, o restaurante não existe mais, e o antigo prédio da Rua XV se encontra em ruínas, esperando pela construção de uma loja que abrigará um clube no andar de cima.

No último dia de aula da turma de Magistério, na frente do restaurante, Dona Nilva preparou um almoço especial para a turma de Luiza. Foto: Arquivo pessoal.

De mãe para filha


Apesar da perda do espaço físico, que marcou a história da família, a tradição de cozinhar para amigos e familiares continuou com a professora aposentada de Filosofia e História, a artesã nas horas vagas, Luiza Maria Wicthoffet Machado, de 59 anos. Quando os pais se mudaram para o Rio de Janeiro, ela ficou em Morretes por mais quatro anos, depois também se mudou para Angra dos Reis, onde conheceu o marido Marco Antônio Mendes Machado e casou-se.

Após uma década no Rio, a família voltou para Morretes, trazendo o filho Guilherme, atual secretário de Infraestrutura do município, que na época tinha apenas um ano. “Meu marido tinha o sonho de criar nossos filhos aqui, por isso voltamos. Mas eu também sempre fui apaixonada por Morretes”, conta.

Desde então, Luiza, junto ao marido e os filhos, passou a morar no bairro Esperança, área rural da cidade, onde continua com a tradição da receita. Hoje, é o filho Guilherme quem mais se envolve na preparação e deve perpetuar o legado dos Wicthoffet.

Luiza exibe com orgulho o prato que é sucesso entre amigos paranaenses e fluminenses. Foto: Rafael Pinheiro/ JB Litoral

O barreado é uma tradição que temos orgulho de manter viva, e esperamos que as futuras gerações de nossa família continuem a prepará-lo com dedicação e amor, seguindo as técnicas que passamos adiante ao longo desses anos. Meu desejo é que os turistas que experimentam o barreado tenham a chance de provar a versão autêntica do prato para que possam apreciar o sabor único que só um prato bem-feito carrega”, conclui a cozinheira.